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Fiophélio
Nonato* . .
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(…) Meu padrinho Celurives, que me criou desde a gênese
da minha não-vida, não gostava que eu brincasse com bichinhos na terra do
quintal lá de casa, não. Sabia que eu gostava de comê-los, principalmente os
besouros e os pequenos caracóis, irresistíveis na sua maciez crocante. Aprendi
desde muito cedo, por volta dos 10 meses de idade, quando já sabia engatinhar
com desenvoltura, que essas iguarias têm hábitos, tiques e manias como os seres
humanos. As joaninhas, por exemplo, se você demorar a mastigá-las, escapam para
o céu da boca e nele se aferram com tal empenho que fica impossível removê-las
com a língua. Se você, no entanto, ali deixá-las por alguns minutos, a
ansiedade acaba por traí-las: cientes da gravidade da situação, começam a
circular por toda a sua boca, pisando mais forte com o par de patas traseiro e
emitindo estrilos – perceptíveis tão-somente pelo aguçado tato da mucosa humana
–, como se a discutir a melhor estratégia para enfrentar o perigo iminente de
morte. Já os caracóis, normalmente lerdos no caminhar, tornam-se lépidos dentro
da boca humana, deslizando em alta velocidade pelas pirambeiras da língua, a
tirar partido da mistura de saliva com sua própria baba de molusco: e assim
esquiam tranqüilos e sorridentes, alheios à visão dos dentes que irão triturá-los.
A par
dessa minha preferência por coleópteros e pequenos moluscos com casca, nunca
rejeitei outros serezinhos que a terra me oferecia, nem mesmo as lacraias e
escorpiões. Sabendo agarrá-los, de modo a evitar e depois extrair o perigoso
ferrão, são frutos muito prazerosos: o gosto acre e rançoso logo é suplantado
pelo agradável entorpecimento da língua que decorre do vazamento do veneno,
inofensivo sem a ação da ferroada. No entanto, há que se conter a gula, posto
que dois ou mais indivíduos dessas espécies peçonhentas, se embocados ao mesmo
tempo, são capazes de planejar e executar em segundos uma vingança terrível:
secretam uma enzima que transforma seu algoz em vítima de uma diarréia das mais
dolorosas. Tal substância, a Ciência ainda não foi capaz de detectá-la, uma vez
que é produzida apenas nesta exata ocasião: quando eles estão à beira da morte
no cadafalso bucal de um ser humano. .(…)
*em Autobiografia
de Um que Nunca Nasceu. . . .
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Ilustração: página de croquis dos Diários de Jean-Christof, cedida
pelo blog Hélio Jesuíno & Cia.Ltda., com a anuência da Fundação Mano Cruz.
4 comentários:
boca maldita a nossa!!!! rsrs
com tano bichinho, ainda bem que já inventaram a pasta e a escova de dentes :)
beijoss
Fino gourmet o Fiophelio! Se eu recebesse essa bela dica antes, não teria dedetizado meu apê.
Beijos
continuo muito curioso em relação a essa autobiografia. aquele poema do Nonato que você postou há tempos é iguaria rara!
abração
Me deixou com água na boca. Água de esgoto... rsrs
Beijo, Tuca!
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