sábado, 28 de janeiro de 2012

Um navio no canavial

.


Um navio no canavial é o título do único livro que o poeta e compositor Paulo Emílio (da Costa Leite) escreveu – sem contar “Eu e meu cavalo”, uma série de poemas que ele pretendia ampliar e também transformar em livro. Embora o “Navio” pareça pronto para navegar no canavial, ele nunca o deu por terminado. De meados dos anos 70, quando li os originais pela primeira vez, até julho de 90, quando ele os deixou na minha casa ao mudar-se de lá para a praia niteroiense de Piratininga (onde veio a contrair, cinco meses depois, perto do Natal, a doença que o mataria antes do Ano Novo), o único acréscimo feito à obra foi o título, surgido à época (82 a 87) em que o poeta morou em Santa Rosa de Viterbo – SP, principal "porto do mar canavieiro" dos Matarazzo.  Mas alguns trechos das dezenas de poemas encadeados que compõem o livro ganharam vida pública, musicados. O melhor exemplo surgiu na letra do samba “Made in Brasil”, com João Bosco, que continha pelo menos um verso de um dos poemas do “Navio”. A música foi feita em 78, especialmente para um show que o compositor mineiro faria no Japão. Não chegou a ser gravada em disco, porque João voltou a trabalhar com Aldir Blanc, e os três fizeram o LP “Linha de passe”, cuja música-título era uma nova versão de “Made in Brasil", acrescida de uma segunda parte letrada por Aldir. A diferença entre os versos dos dois letristas é grande e, para enfatizá-la, confronto trechos feitos por cada um deles com a letra de “Cobra criada” (só do Paulo Emílio com o João), que estilisticamente só tem  a ver com a primeira metade de “Linha de Passe”. Senão, vejamos:

Linha de passe / Paulo Emílio:  Toca de tatu, lingüiça e paio e boi zebu/ Rabada com angu, rabo-de-saia/ Naco de peru, lombo de porco com tutu/ E bolo de fubá, barriga d'água / Há um diz que tem e no balaio tem também/ Um som bordão bordando o som, dedão, violação (...)

(Em itálico, o verso que provém de um dos poemas de “Um navio no canavial”.)

Linha de passe / Aldir Blanc:  Já era Tirolesa, o Garrincha, a Galeria/ A Mayrink Veiga, o Vai-da-Valsa, e hoje em dia/ Rola a bola, é sola, esfola, cola, é pau a pau/ E lá vem Portela que nem Marquês de Pombal/ Mal, isso assim vai mal, mas viva o carnaval/ Lights e sarongs, bondes, louras, King-Kongs/ Meu pirão primeiro é muita marmelada (...)

Cobra criada: Suco de sururucu/ Diga lá jacu/ Cutia comadre/ Posta de pirarucu/ Diga lá caju/ Barata cascuda/ Gruta de viúva negra/ Caranguejeira/ Saúva coruja/ Rastro de jararucu/ Jararacoral/ Piranha calunga/ Diaba de banda retrai/ De carataí/ Traíra de dente de dá/ E cada dentada que dá/ Cascudo cará/ Purus Juruá/ Mordida no maracujá/ De cobra criada no mar/ Chocalha no cadê você/ Sussurra no bote que dá/ Curare de cobra/ Suga e sai/ Picada de cobra/ Amor não dói.
 
A aventura no ‘mar dos canaviais”, Paulo Emílio a justificava com o desejo de morar num lugar mais tranqüilo, onde pudesse terminar o livro e cuidar da saúde, debilitada por um princípio de cirrose diagnosticado em 81. Se não terminou o livro, como eu já disse, da saúde ele tratou foi com muita cerveja e pinga, que é impossível ficar sóbrio num lugar apinhado de boêmios “24 horas” e doidos com pós-doutorado. Como se não bastasse, a cidade tem quatro ou cinco botequins por metro quadrado (exagerei: são só três ou quatro!). Eu mesmo, nas mais de dez vezes em que estive em Santa Rosa de Viterbo, só não tomava dois porres por dia quando tomava três. Isso, se não emendasse uma bebedeira na outra para, no mínimo, poder dizer à família e aos amigos abstêmios daqui do Rio que estive em Santa Rosa   durante três semanas, por exemplo e só tomei um porre!


Psicoterapia floral com cheiro de mandioquinha

Chega de falar de Santa Rosa de Viterbo, que esse é um dos capítulos mais longos (se é que tem fim) da vida do Paulo Emílio. Chega de post, inclusive, que já vai enorme e ainda tenho de acrescentar pelos menos dois vídeos de músicas do poeta cantadas por suas intérpretes prediletas: Elis e Clara Nunes. Mas preciso dizer mais três coisinhas:

1 – Nunca publiquei nada sobre o Paulo Emílio nesses 21 anos sem ele. Não sei bem o motivo desse silêncio. Talvez se deva ao fato de me bastar manter com ele conversas em momentos que não estou entendendo o que se passa comigo. E isso acontece a toda hora...  Posto agora em razão do aniversário dele, o que soa bem absurdo, como se tivessem se passado vinte anos sem o dia do aniversário dele. Que aliás foi anteontem, 26 de janeiro. Meu atraso é por culpa da Net, que ontem e hoje deu duas bandas certeiras na minha cada dia mais estreita banda larga.

2 – Não consegui escrever alguns casos do Paulo Emílio que achava essencial contar aqui. Mesmo depois de tanto tempo, relembrá-los me emocionou a ponto de o coração engruvinhar e as mãos travarem. O que se segue, por exemplo, escrevê-lo foi quase um parto natural de quadri ou pentagêmeos.

3 – Num dos piores dias da minha vida, eu estava trabalhando no Bar da Pombas, negócio maluco inventado por alguns amigos que, sensatamente, acabaram desistindo da idéia. Mas o pacóvio aqui foi em frente e o comprou, no início de 78. O bar em si até que ia muito bem: 20 meses após a compra chegávamos àquela fase em que se começa a ter lucro. Mas meus dois sócios estavam de saco cheio e queriam vendê-lo. Minha mulher estava de saco cheio e queria que eu o vendesse. E meus pais, meus amigos, meu cachorro... o mundo inteiro estava de saco cheio do Bar das Pombas. Menos eu, que não tinha um saco pra encher: o meu estourara havia meses e, em meio a tanta demanda alheia, não me sobrava tempo nem para arranjar outro saco. 
E agora eu estava ali, trabalhando no bar, mas doido para sair correndo, me esconder num canto e chorar com meus botões. Era pouco mais de meia-noite, dois ou três bebuns no balcão e as mesas vazias, os empregados me pressionando para irmos embora e eu querendo manter o horário mínimo que estabelecera para fechar, que era duas da manhã. Sustentava meus escombros apoiando os cotovelos na caixa registradora quando, de repente, pude distinguir lá fora, atravessando a rua escura e deserta em direção ao bar, um ser todo de preto, das botas de cano curto ao chapéu de abas largas. Era a salvação, pensei, porque se não fosse o Hopalong Cassidy ou O Paladino do Oeste, heróis do meu faroeste infantil, só podia ser o Paulo Emílio. E era ele mesmo, o herói do meu faroeste adulto. Entrou, seríssimo, com aqueles olhos penetrantes e perscrutadores cravados nos meus. Não falou comigo, mas com o copeiro: “Duas cervejas, dois copos e dois traçados de conhaque com cinzano. Ah, e diz pro seu chefe que mandei ele fechar logo essa espelunca e ir lá pra minha mesa.” Em menos de um minuto despachei os empregados, baixei a porta corrediça e fui pra mesa dele: a última, uma das seis que ficavam numa área a céu aberto, sob uma amendoeira centenária ou quase. Paulo Emílio gostava dessa mesa por ser a mais discreta e por ficar bem junto ao rio Maracanã, que ladeava o bar em todo o seu comprimento. “É a mais confortável. A gente não precisa correr ao banheiro para vomitar.” Bebemos as duas cervejas, os traçados e depois mais quatro ou cinco cervejas, sem que eu desse um pio sobre o que me afligia. Ele não me deu chance: falou besteira atrás de besteira e quando viu que eu já estava bem melhor, mas muito bêbado (aqueles porres quase instantâneos de quem está mal), falou: “Vamos para casa”. O que significava irmos pra minha casa, porque isso – uma casa pra chamar de sua – ele já não tinha havia alguns anos. 
Acordei com o apartamento inundado de cheiro de ensopado de carne com batata baroa (a mandioquinha dos paulistas), um dos pratos que o Paulo Emílio mais gostava de fazer e, sobretudo, o que eu mais gostava de comer. Isso me fez levantar com uma disposição bem rara naquele período. Já me imaginava à mesa devorando o ensopado e falando, com serenidade, tudo que eu não falara de madrugada. Qual o quê!  Não falei uma vírgula sequer sobre o assunto com ele. Nem durante o almoço nem jamais.  Porque toda a angústia que eu vinha sentindo me pareceu tolice, coisa miúda, ao chegar na sala e me deparar com a mesa que meu amigo acabara de pôr. Toalha branca de linho com guardanapos combinando, panela de barro com o ensopado, travessa de arroz com seis ou sete ovos fritos por cima (iguaria especialíssima para nós dois), garrafa de vinho tinto poruguês e, no centro da mesa, imponente feito uma jarra de cristal da Boêmia, o copo do liquidificador exultando de rosas brancas.

O poeta, o pescador e o peixe de Itu

Paulo Emílio, em Santa Rosa de Viterbo, com o nosso querido Dito Cervi, que mostra o tamanho da piaba que pescou no rio Pardo. Admirador de uma boa mentira ("A inteligência é burra e a verdade, dissimulada!"), o poeta, sempre alerta, faz um de seus gestos mais peculiares: essa mão com o dedo médio apontado para cima, o anular para frente, o mindinho para baixo e o polegar e o indicador em pinça, prontos para pegar e saborear os microscópicos tesouros infinitos de cada pessoa, as migalhas de felicidade compartilháveis, a lingerie das moléculas do imponderável.

  
 COBRA CRIADA – João Bosco e Paulo Emílio
  .


NATUREZA VIVA – João Bosco e Paulo Emílio
 .


NAÇÃO – João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio
 .
.


 Um tema bem adequado para o fim do mundo

 
“Eu quero me confessar
Antes da barca afundar:
 Sei onde guardam o rum
E a vida é uma casca de noz.”

 . . . . . .
  (De uma das últimas canções  que o Paulo Emílio fez – letra e música. Esses versos iniciais se encaixam bem na atual moda de fim do mundo, não? Pois a continuação, que infelizmente não lembro direito, é o próprio apocalipse!)


 .

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Asas abertas sobre a iguana Odara


Este Samba do Avião do Crioulo Doido não vai além desse verso-título. Creio que por insuficiência de carioquice, pois ele é mineiro, no máximo mineiroca, tal qual o crioulo doido desbotado aqui. E o avião? Ah, esse decolou do Maranhão para vir sobrevoar, bem a jato, essa cidade maravilhosa que as autoridades e a grande mídia – junto com a encagaçada maioria de sua população – tentam a todo custo difamar, esvaziar e destruir. Não conseguiram, ainda, de modo que sobrou até bastante para o deleite do avião, que atende pelo nome de Adriana Araújo (mas se chamá-lo de Pólen Radioativo, nome do seu angar blogosférico, ele pousa sem reclamar dos buracos na pista).
.
A noite em que falei mais do que eu mesmo!

Olha o avião durante um pit stop para reabastecimento de chope numa adega do Largo do Machado. A foto, eu a tirei mentalmente no instante em que, ainda no táxi que me levou até o local, olhei para as mesas e logo pude identificar o aparelho, cuja fuselagem e interior eu fora conhecer pessoalmente. Não esperava localizá-lo tão rápido, porque passava das 23 horas e, à noite, não distingo nada a mais de três metros de distância. Só que assim que cheguei o sorriso do supersônico maranhense espocou numa radioativa polinização, iluminando tudo e revelando em minúcias a alma de todos – exceto a do desalmado cavalheiro sentado à primeira mesa à direita.

As não mais de duas horas que ali passamos foram de muita tensão e ansiedade para mim (levando-me a falar mais do que todos os fregueses e funcionários da casa juntos!); primeiro, porque fiquei sabendo que o nosso encontro seria muito breve, e isso sempre me deixa tenso; segundo, porque a presença daquele sinistro senhor por pouco não me asfixiou de angústia.

Um pneumático e erundino cachorrão

Eis um instantâneo mais aproximado do avião, que aí preparava a aterrissagem em mim, para o nosso primeiro abraço ao vivo. Ana Claudia, sua amiga que aparece na foto anterior, acho que foi ao banheiro nessa hora. Ou tirar satisfação com o cavalheiro sinistro, que não parava de nos incomodar. Ô sujeitinho mais inconveniente! Cochichou-me que o Hélio Jesuíno morava a poucos metros dali, mas que de casa não viria mais, nunca mais:
– No máximo, aparecerá para um chopinho bem rápido, preclaro Tuca. Isso... se eu me dispuser a providenciar um indulto em caráter especialíssimo.
À Ana Claudia, o ensebado atazanava lembrando que ela deveria cuidar de não perder o vôo para São Luiz na manhã seguinte, numa evidente e pérfida alusão ao enterro de sua tia, que se fora naquele dia em circunstâncias trágicas.
– Garçom, conhece esse chato?
– De vez em quando ele dá as caras. Sempre assim, sozinho. Mas costuma sair daqui acompanhado.
– Mulher?
– Mulher, homem, criança...
– Sabe o que ele faz?
– Tem um freguês, poeta, que o conhece. Disse que ele é um... acho que um... um pneumático e erundino professor de latir!
– Arrá, eu sabia: um cachorrão!

O agregado
.
.
 Marcantonio Costa . . . .   .  . . . . . . . .   .  . .
 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A morte não é um invasor.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Não é senão um hóspede muito educado,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fleumático e erudito professor de latim
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Que ocupa o cômodo mais modesto da casa.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Senta-se conosco à mesa,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . E com olhos fixos no prato
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sorve a sopa rala, nossa única refeição,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Limpa com cuidado os lábios no guardanapo,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . E da mesa retorna ao quarto
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Com um sorriso frugal e de fingida paciência,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . De quem se basta apenas com o antepasto.
.
O bico de pena é do livro Pecados Imortais, que Hélio Jesuíno escreveu (em parceria com Sérgio Oiticica, entre outros) e ilustrou. Conheça a obra, aqui.
O agregado foi extraído de um dos blogs do Marcantonio: azultemporario.blogspot.com
.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O andarilho solar




Risca um rastro infinito de sol espalhando os passos recolhidos de todas as pessoas com as quais cruzou em suas andanças.

Gente
Chora por nada e ri de tudo, sem qualquer dúvida de que ser gente é ser criança ou louco ou ambos.

O último dos moicanos
Toda vez que sai à rua, o último dos moicanos vai plantando a memória da selva pela taba estabanada da metrópole.

É ele
Para presentear a amada, desenhara uma forma estranha e sombria, mas com tanta ternura, que ela logo reconheceu: “É ele, o seu coração!”

De bornal cheio
“Quem não sabe catar pedrinhas... carrega pedregulhos!” –  pensou, a caminho de casa, com o bornal abarrotado de estrelas.

Colagens
Colou, em cada entrelinha da enciclopédia, um mistério que enriquece a vida e desmascara a ciência.

O túnel
Andava tão só, tão ele, que nem reparou quando a multidão veio em sua direção e atravessou, com grande alarido, o túnel aberto em seu peito.

Como Bukowski
“Abre para mim as tuas coxas, amor” – disse ele, pronto para desenhar a eternidade nas entranhas da amada.

À toa
“Infernal é tudo o que se cria; divino, só o que nem os deuses podem criar” – concluiu o ateu à toa, enquanto ascendia em chamas ao céu.
.
.
Estudos para piano
Desenhou Pégaso de tromba, um bisão bisavô, três freiras xifópagas a parir. . .   Todos em esboço, mas com teclado brilhando de tão afinado. 

Imagens extraídas do blog do Jesuíno:

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Solar é a casa da solidão

.

Fazer, com o Hélio Jesuíno, algum trocadilho ou outro tipo de associação entre o seu primeiro nome e o astro-rei era garantia de receber uma trauletada firme nos cornos da alma. E o título desta postagem foi gerado justamente a partir de uma  conversa que tivemos, ali pelos idos do século XVIII, na qual cometi a besteira de chamá-lo de “ensolarado amigo”. Hélio não passava de um sujeito tosco e rude para quem não conseguia ou não se interessava em perceber o ser extremamente sensível e generoso que habitava o corpanzil daquele “andarilho quirguiz” – na boa definição de uma amiga anônima que comentou na postagem anterior. Ao conhecê-lo, em 76, cheguei a pensar que estivesse tendo o privilégio de conhecer, em carne e osso, o Derzu Uzala, do filme de Kurosawa que eu vira havia poucas semanas. Não, o privilégio foi maior, muitíssimo maior, como vim a saber em alguns anos: com o “cacique boliviano”, como eu preferia defini-lo – sem jamais dizer a ele! –, caminhei muito mais léguas eletrizantes que as percorridas pelo agrimensor militar russo guiado por Derzu no cinema, no livro e na vida real. Foram praças, avenidas, ruas, ruelas e becos sem fim, sempre à caça de um boteco bem fuleiro que oferecesse toda a nobreza que importava aos nossos olhos e à nossa convivência.

Minha última conversa tête-à-tête com Hélio Jesuíno – que jamais eu poderia imaginar  fosse a derradeira – deu-se no quintalzinho da casa de vila em que ele morava desde que se casou com a Silvia, sua primeira e única mulher, há quase 40 anos. Bebemos cerveja, beliscamos azeitonas, implicamos com a Sílvia que mesmo gripada não parava de arrumar a casa, falamos de nossos projetos em parceria, falamos da vida... e até da morte. Sarcasticamente, é claro. Mesmo assim, lá pelas tantas ele me interrompeu: “Pára, para já, que estão mandando.” Era a voz do eu místico desse ateu à toa que nem eu – botafoguenses os dois, simpatizantes do candomblé, ele bem mais que isso, embora eu não hesite em afirmar que, se há alguma sabedoria real nas religiões mais conhecidas, ela concentra-se praticamente toda nesse culto que os negros trouxeram da África e souberam conservar mesmo sob pancadas pesadas de seus “donos”, fiéis seguidores do deus católico. Oxalá, meu amigo SOLAR, ENSOLARADO e SOL-SEMPRE-NASCENTE, sim! –, Xangô continue contigo.

(Na imagem ao alto, duas das páginas do livro-quadro Em carne e osso”, que fecha a Suíte Iconoclasta, última grande série de trabalhos que Hélio Jesuíno expôs – no salão de exposições da Academia Brasileira de Letras, com irrepreensível curadoria do poeta, historiador e crítico de arte Alexei Bueno, um dos mais abalizados e entusiasmados admiradores de seu trabalho. Na foto encaixada, Hélio aponta seu "santo de cabeça" numa estante do ateliê, conforme se vê por inteiro no vídeo que encerra essa postagem, todo ele sobre a Suíte Iconoclasta, inclusive e sobretudo o "único exemplar" do que chamo, um tanto impropriamente, de livro-quadro, sua obra que mais fundo me toca.)
.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . Hoje Há Hélio
. . . . . . . . . . . . . . . . Flávio Braga*
. . . . . . . . . . . . . . . . . . Hoje Há Hélio
. . . . . . . . . . . . . . . . . . entre vãos
. . . . . . . . . . . . . . . . . . Hélio do vão
. . . . . . . . . . . . . . . . . . do piso alaranjado tigrado,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . mascarado, risonho,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . corredoreando por interiores,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . transparente,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . fotográfico,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . pornográfico,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . pornofônico,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . Hélio gás de papos longos,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . lentos esgares antes do dito e feito,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . Hélio índio,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . Silvia ícola

. . . . . . . . . . . . . . . . . . Sob colagens múltiplas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . Helio púlpito
. . . . . . . . . . . . . . . . . . PLENÉLIO
. . . . . . . . . . . . . . . . . . porcas jazem carneiros em janeiro,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . dezembro, 28
. . . . . . . . . . . . . . . . . . aqui, dentro do meu coração...
 

*O romancista e teatrólogo Flávio Braga é amigo do Hélio Jesuíno há milênios – embora o artista plástico certamente dissesse que isso é um certo exagero típico de escritores: “Só nos conhecemos há séculos!”


 .