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Um
navio no canavial é o título do único livro que o poeta e compositor Paulo Emílio
(da Costa Leite) escreveu – sem contar “Eu e meu cavalo”, uma série de poemas que
ele pretendia ampliar e também transformar em livro. Embora o
“Navio” pareça pronto para navegar no canavial, ele nunca o deu por terminado.
De meados dos anos 70, quando li os originais pela primeira vez, até julho de
90, quando ele os deixou na minha casa ao mudar-se de lá para a praia niteroiense
de Piratininga (onde veio a contrair, cinco meses depois, perto do Natal, a
doença que o mataria antes do Ano Novo), o único acréscimo feito à obra foi o
título, surgido à época (82 a
87) em que o poeta morou em
Santa Rosa de Viterbo – SP, principal "porto do mar
canavieiro" dos Matarazzo. Mas alguns trechos das dezenas de poemas
encadeados que compõem o livro ganharam vida pública, musicados. O melhor
exemplo surgiu na letra do samba “Made in Brasil”, com João Bosco, que continha
pelo menos um verso de um dos poemas do “Navio”. A música foi feita em 78,
especialmente para um show que o compositor mineiro faria no Japão. Não chegou
a ser gravada em disco, porque João voltou a trabalhar com Aldir Blanc, e os
três fizeram o LP “Linha de passe”, cuja música-título era uma nova versão de
“Made in Brasil", acrescida de uma segunda parte letrada por Aldir. A
diferença entre os versos dos dois letristas é grande e, para enfatizá-la,
confronto trechos feitos por cada um deles com a letra de “Cobra criada” (só do
Paulo Emílio com o João), que estilisticamente só tem a ver com a
primeira metade de “Linha de Passe”. Senão, vejamos:
Linha
de passe / Paulo Emílio: Toca de tatu, lingüiça e paio e boi zebu/ Rabada com angu, rabo-de-saia/
Naco de peru, lombo de porco com tutu/ E bolo de fubá, barriga d'água / Há um
diz que tem e no balaio tem também/ Um
som bordão bordando o som, dedão, violação (...)
(Em itálico, o verso que provém de um dos poemas de “Um
navio no canavial”.)
Linha
de passe / Aldir Blanc: Já era Tirolesa, o Garrincha, a Galeria/ A Mayrink Veiga, o Vai-da-Valsa,
e hoje em dia/ Rola a bola, é sola, esfola, cola, é pau a pau/ E lá vem Portela
que nem Marquês de Pombal/ Mal, isso assim vai mal, mas viva o carnaval/ Lights
e sarongs, bondes, louras, King-Kongs/ Meu pirão primeiro é muita marmelada
(...)
Cobra
criada: Suco de sururucu/ Diga lá
jacu/ Cutia comadre/ Posta de pirarucu/ Diga lá caju/ Barata cascuda/ Gruta de
viúva negra/ Caranguejeira/ Saúva coruja/ Rastro de jararucu/ Jararacoral/ Piranha
calunga/ Diaba de banda retrai/ De carataí/ Traíra de dente de dá/ E cada
dentada que dá/ Cascudo cará/ Purus Juruá/ Mordida no maracujá/ De cobra criada
no mar/ Chocalha no cadê você/ Sussurra no bote que dá/ Curare de cobra/ Suga e
sai/ Picada de cobra/ Amor não dói.
A aventura no ‘mar dos canaviais”,
Paulo Emílio a justificava com o desejo de morar num lugar mais tranqüilo, onde
pudesse terminar o livro e cuidar da saúde, debilitada por um princípio de
cirrose diagnosticado em 81. Se não terminou o livro, como eu já disse, da saúde
ele tratou foi com muita cerveja e pinga, que é impossível ficar sóbrio num
lugar apinhado de boêmios “24 horas” e doidos com pós-doutorado. Como se não bastasse, a
cidade tem quatro ou cinco botequins por metro quadrado (exagerei: são só três
ou quatro!). Eu mesmo, nas mais de dez vezes em que estive em Santa Rosa de Viterbo, só não tomava
dois porres por dia quando tomava três. Isso, se não emendasse uma bebedeira
na outra para, no mínimo, poder dizer à família e aos amigos abstêmios daqui do Rio que estive
em Santa Rosa –
durante três semanas, por exemplo – e só tomei um porre!
Psicoterapia
floral com cheiro de mandioquinha
Chega de falar de Santa Rosa de
Viterbo, que esse é um dos capítulos mais longos (se é que tem fim) da vida do
Paulo Emílio. Chega de post, inclusive,
que já vai enorme e ainda tenho de acrescentar pelos menos dois vídeos de músicas
do poeta cantadas por suas intérpretes prediletas: Elis e Clara Nunes. Mas
preciso dizer mais três coisinhas:
1 – Nunca publiquei nada sobre o
Paulo Emílio nesses 21 anos sem ele. Não sei bem o motivo desse silêncio.
Talvez se deva ao fato de me bastar manter com ele conversas em momentos que não estou entendendo
o que se passa comigo. E isso acontece a toda hora... Posto agora em razão do aniversário dele, o que soa bem absurdo, como se tivessem se passado vinte anos sem o dia do aniversário dele. Que aliás foi anteontem, 26 de janeiro. Meu atraso é por culpa da Net, que ontem e hoje deu duas bandas certeiras na
minha cada dia mais estreita banda larga.
2 – Não consegui escrever alguns casos do Paulo Emílio que achava essencial contar aqui. Mesmo depois de tanto
tempo, relembrá-los me emocionou a ponto de o coração engruvinhar e as mãos travarem. O que se segue, por exemplo, escrevê-lo foi quase um parto natural de quadri ou pentagêmeos.
3 – Num dos piores dias da minha
vida, eu estava trabalhando no Bar da Pombas, negócio maluco inventado por
alguns amigos que, sensatamente, acabaram desistindo
da idéia. Mas o pacóvio aqui foi em frente e o comprou, no início de 78. O bar em si até que ia muito bem: 20 meses após a compra chegávamos àquela fase em que se começa a ter lucro. Mas meus dois sócios
estavam de saco cheio e queriam vendê-lo. Minha mulher estava de saco cheio e
queria que eu o vendesse. E meus pais, meus amigos, meu cachorro... o mundo inteiro estava de
saco cheio do Bar das Pombas. Menos eu, que não tinha um saco pra encher: o meu
estourara havia meses e, em meio a tanta demanda alheia, não me sobrava tempo
nem para arranjar outro saco.
E agora eu estava ali, trabalhando no bar, mas doido para sair correndo, me esconder num canto e chorar com meus botões. Era pouco mais de meia-noite, dois ou três bebuns no balcão e as mesas vazias, os empregados me pressionando para irmos embora e eu querendo manter o horário mínimo que estabelecera para fechar, que era duas da manhã. Sustentava meus escombros apoiando os cotovelos na caixa registradora quando, de repente, pude distinguir lá fora, atravessando a rua escura e deserta em direção ao bar, um ser todo de preto, das botas de cano curto ao chapéu de abas largas. Era a salvação, pensei, porque se não fosse o Hopalong Cassidy ou O Paladino do Oeste, heróis do meu faroeste infantil, só podia ser o Paulo Emílio. E era ele mesmo, o herói do meu faroeste adulto. Entrou, seríssimo, com aqueles olhos penetrantes e perscrutadores cravados nos meus. Não falou comigo, mas com o copeiro: “Duas cervejas, dois copos e dois traçados de conhaque com cinzano. Ah, e diz pro seu chefe que mandei ele fechar logo essa espelunca e ir lá pra minha mesa.” Em menos de um minuto despachei os empregados, baixei a porta corrediça e fui pra mesa dele: a última, uma das seis que ficavam numa área a céu aberto, sob uma amendoeira centenária ou quase. Paulo Emílio gostava dessa mesa por ser a mais discreta e por ficar bem junto ao rio Maracanã, que ladeava o bar em todo o seu comprimento. “É a mais confortável. A gente não precisa correr ao banheiro para vomitar.” Bebemos as duas cervejas, os traçados e depois mais quatro ou cinco cervejas, sem que eu desse um pio sobre o que me afligia. Ele não me deu chance: falou besteira atrás de besteira e quando viu que eu já estava bem melhor, mas muito bêbado (aqueles porres quase instantâneos de quem está mal), falou: “Vamos para casa”. O que significava irmos pra minha casa, porque isso – uma casa pra chamar de sua – ele já não tinha havia alguns anos.
Acordei com o apartamento inundado de cheiro de ensopado de carne com batata baroa (a mandioquinha dos paulistas), um dos pratos que o Paulo Emílio mais gostava de fazer e, sobretudo, o que eu mais gostava de comer. Isso me fez levantar com uma disposição bem rara naquele período. Já me imaginava à mesa devorando o ensopado e falando, com serenidade, tudo que eu não falara de madrugada. Qual o quê! Não falei uma vírgula sequer sobre o assunto com ele. Nem durante o almoço nem jamais. Porque toda a angústia que eu vinha sentindo me pareceu tolice, coisa miúda, ao chegar na sala e me deparar com a mesa que meu amigo acabara de pôr. Toalha branca de linho com guardanapos combinando, panela de barro com o ensopado, travessa de arroz com seis ou sete ovos fritos por cima (iguaria especialíssima para nós dois), garrafa de vinho tinto poruguês e, no centro da mesa, imponente feito uma jarra de cristal da Boêmia, o copo do liquidificador exultando de rosas brancas.
E agora eu estava ali, trabalhando no bar, mas doido para sair correndo, me esconder num canto e chorar com meus botões. Era pouco mais de meia-noite, dois ou três bebuns no balcão e as mesas vazias, os empregados me pressionando para irmos embora e eu querendo manter o horário mínimo que estabelecera para fechar, que era duas da manhã. Sustentava meus escombros apoiando os cotovelos na caixa registradora quando, de repente, pude distinguir lá fora, atravessando a rua escura e deserta em direção ao bar, um ser todo de preto, das botas de cano curto ao chapéu de abas largas. Era a salvação, pensei, porque se não fosse o Hopalong Cassidy ou O Paladino do Oeste, heróis do meu faroeste infantil, só podia ser o Paulo Emílio. E era ele mesmo, o herói do meu faroeste adulto. Entrou, seríssimo, com aqueles olhos penetrantes e perscrutadores cravados nos meus. Não falou comigo, mas com o copeiro: “Duas cervejas, dois copos e dois traçados de conhaque com cinzano. Ah, e diz pro seu chefe que mandei ele fechar logo essa espelunca e ir lá pra minha mesa.” Em menos de um minuto despachei os empregados, baixei a porta corrediça e fui pra mesa dele: a última, uma das seis que ficavam numa área a céu aberto, sob uma amendoeira centenária ou quase. Paulo Emílio gostava dessa mesa por ser a mais discreta e por ficar bem junto ao rio Maracanã, que ladeava o bar em todo o seu comprimento. “É a mais confortável. A gente não precisa correr ao banheiro para vomitar.” Bebemos as duas cervejas, os traçados e depois mais quatro ou cinco cervejas, sem que eu desse um pio sobre o que me afligia. Ele não me deu chance: falou besteira atrás de besteira e quando viu que eu já estava bem melhor, mas muito bêbado (aqueles porres quase instantâneos de quem está mal), falou: “Vamos para casa”. O que significava irmos pra minha casa, porque isso – uma casa pra chamar de sua – ele já não tinha havia alguns anos.
Acordei com o apartamento inundado de cheiro de ensopado de carne com batata baroa (a mandioquinha dos paulistas), um dos pratos que o Paulo Emílio mais gostava de fazer e, sobretudo, o que eu mais gostava de comer. Isso me fez levantar com uma disposição bem rara naquele período. Já me imaginava à mesa devorando o ensopado e falando, com serenidade, tudo que eu não falara de madrugada. Qual o quê! Não falei uma vírgula sequer sobre o assunto com ele. Nem durante o almoço nem jamais. Porque toda a angústia que eu vinha sentindo me pareceu tolice, coisa miúda, ao chegar na sala e me deparar com a mesa que meu amigo acabara de pôr. Toalha branca de linho com guardanapos combinando, panela de barro com o ensopado, travessa de arroz com seis ou sete ovos fritos por cima (iguaria especialíssima para nós dois), garrafa de vinho tinto poruguês e, no centro da mesa, imponente feito uma jarra de cristal da Boêmia, o copo do liquidificador exultando de rosas brancas.
O poeta,
o pescador e o peixe de Itu
Paulo
Emílio, em Santa Rosa
de Viterbo, com o nosso querido Dito Cervi, que mostra o tamanho da piaba que pescou no rio
Pardo. Admirador de uma boa mentira ("A inteligência é burra e a verdade, dissimulada!"),
o poeta, sempre alerta, faz um de seus gestos mais peculiares: essa mão com o
dedo médio apontado para cima, o anular para frente, o mindinho para baixo e o
polegar e o indicador em pinça, prontos para pegar e saborear os microscópicos tesouros
infinitos de cada pessoa, as migalhas de felicidade compartilháveis, a lingerie
das moléculas do imponderável.
COBRA
CRIADA – João Bosco e Paulo Emílio
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NATUREZA VIVA – João Bosco e Paulo Emílio
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NAÇÃO –
João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio
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Um tema bem adequado para o fim do mundo
“Eu quero me confessar
Antes da barca afundar:
Sei onde guardam o rum
E
a vida é uma casca de noz.”
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(De uma das últimas canções que o Paulo Emílio fez – letra e música. Esses versos iniciais se encaixam bem na
atual moda de fim do mundo, não? Pois a continuação, que infelizmente não
lembro direito, é o próprio apocalipse!)
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