segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Shalom, tchê!



Moacyr Scliar

23.03.1937 – 27.02.2011

“Um dia – ou uma noite, de preferência uma noite, a noite é mais propícia para gente como nós e para a evocação da memória que deixamos – alguém lembrará de mim. Quando isso acontecerá, não sei. Daqui a muito tempo, acho. Séculos, milênios, quem sabe. A entidade que sou – pobre entidade, modesta entidade, lamentável entidade – terá desaparecido. Estarei reduzido a diminutas partículas que ventos e águas disseminarão pelo mundo. Uma partícula fará parte de uma pedra, outra estará na casca de uma fruta, outra na córnea de um leão, no pelo de uma raposa, no osso de um ser humano. Dispersão à parte, é isso permanência? Eu gostaria muito de responder que sim; negar a morte faz parte de nossa precária condição humana, e recorremos a todos os malabarismos do pensamento, a todas as formas da fantasia para atingir esse objetivo. Mas não adianta, não é? Não adianta. Metáforas consolam, mas não resolvem nosso problema: vamos adoecer, vamos morrer, e as partículas não nos preservarão. Partículas não pensam, não almejam, não tentam antecipar o futuro. Partículas não anseiam por se reunir, como ansiaram por se reunir as pessoas que aqui estão; partículas não anseiam por reconstruir o ser humano de que um dia fizeram parte. Partículas não atendem por um nome, partículas não têm sonhos nem desejos, partículas não escrevem em pergaminhos, não interpretam o que está escrito em pergaminhos. Não posso, portanto, ter ilusões. Evocar não é ressuscitar. Essa história de “viverá para sempre na memória dos pósteros” é mentira. Mentira piedosa e consoladora, mas mentira.

Não que eu recuse as ilusões ou a mentira; de certo modo, as ilusões e a mentira são, para mim, um modo de vida. Sou apenas um criador de sonhos. Do ponto de vista do futuro, sou descartável. Se tenho algum lugar reservado, é na lata de lixo da história, gigantesco recipiente que já recebeu, milhões, bilhões de pessoas, com suas frustradas aspirações, seus desejos não realizados, seus falidos projetos. (...)”

in Manual da Paixão Solitária, Companhia das Letras, 2008, pág. 12

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Poesia chilena made in Moçambique

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. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Um homem

Nicanor Parra . ... .

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . A mãe de um homem está gravemente doente

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Ele parte à procura de um médico

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E chora

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Na rua vê a sua mulher com outro homem

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Vão de mão dada

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Ele segue-os de perto

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . De uma árvore a outra

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E chora

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Depois cruza-se com ele um amigo de juventude

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Aos anos que não nos víamos!

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Acabam por entrar num bar

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Discutem riem

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . O homem sai para ir mijar ao pátio interior

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E vê uma rapariga

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Já é de noite

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Ela lava os pratos

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . O homem aproxima-se da rapariga

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Toma-a pela cintura

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Dançam uma valsa

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Juntos saem juntos rua fora

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E riem

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Acontece um acidente

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . A rapariga perdeu a consciência

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . O homem vai telefonar

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E chora

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Chega ao pé de uma casa iluminada

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Pede para telefonar

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Há alguém que o reconhece

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Fique para jantar amigo

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Não

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Onde está o telefone

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Coma amigo coma

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Depois logo vai

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Ele senta-se para jantar

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E bebe como um condenado

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E ri

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Fazem-no cantar

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . Ele canta

. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . E depois adormece no escritório.



Nicanor Parra - “Poeta e matemático chileno e invariavelmente candidato ao Nobel nos últimos vinte anos, Parra, irmão de Violeta, é o anti-Neruda e um poeta que revolucionou a poesia do seu país ao rechaçar a metáfora e evadir-se de todo e qualquer obscurantismo expressivo. Poeta de grande verve, a sua capacidade para “coloquiar” com o leitor, e o seu enfoque em cenas, figuras e imagens populares e quotidianas tornaram-no uma figura central no panorama poético da América do Sul. Entre os seus livros contam-se Poemas e Antipoemas, Cueca larga e Hojas de Parra.(António Cabrita)


António Cabrita - Escritor e jornalista português, residente em Maputo, Moçambique. Ótimo poeta, traduziu este O homem, entre outros poemas de Nicanor Parra, publicados no seu blog Raposas a sul, aqui. Devem visitá-lo, com urgência, TODOS OS MEUS 17 LEITORES ALFABETIZADOS – exceto os que porventura sofram de desarranjo cérebro-intestinal, estrabismo histérico, urticárias nas unhas e outros males decorrentes do contato visual com prosa e poesia de alta qualidade.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Revelações fotográficas

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Das nuances de cor que se eclipsam na cama


Eu olhei a foto. Bem distraidamente, como um carnívoro radical que olhasse alfaces, couves e espinafres na feira. E saí, em desatino, a escrever:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sei que sou é quando amanhecem

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sobre as ondas de nossos lençóis

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tuas dunas acossadas pelos ventos

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Desses meus olhos de lamber a correnteza

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . De um rio de lava que nos leva

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ao infinito oceano concebido

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Na paz do desejo satisfeito.

Ah, quer saber, leitor? Esta foto tão suave e estes versos tão melífluos, somados, deram uma bela de uma porcaria. Eu bem que aprecio os meios-tons, mas não no sexo. Quero é muito contraste, muita combustão na cama! E nenhum risco de consumir meus dias a amar lençóis e cobrir-me com a mulher da vez.


Para não dizer que não falei de flores.

Meu coração – sim, eu tenho um coração! – é imenso, embora os poucos que já o viram tenham precisado recorrer a um microscópio. A grandeza cardíaca, porém, não está no que se pode ver, mas no que se pode sentir. Daí que o tamanho de um coração varia em função da percepção do coração alheio. O meu, confesso, vive atropelando o dos outros. Porque é cego, o desgraçado. E analfabeto incurável: só admite estudar braile em corpos femininos, e estes, como se sabe, são cheios de B, P, V, X – e, não raro, KY –, mas muitas consoantes e todas as vogais sempre se perdem no redemoinho de gemidos e suspiros. Esse perfil desfavorável do cegueta que habita o meu peito é que o faz sair por aí, desvairado, a colher meigos ramos de flores que, na maioria das vezes, não passam de impiedosos cactos.

Teophanio Lambroso. . . ..

sábado, 5 de fevereiro de 2011

De alguém que não sabe onde está



Já é amiga querida, umas das belas amizades que nasceram através do blog. Vínhamos trocando alguns e-mails, ela bem-humorada como sempre. De repente, a bomba:


Um... bigo

tuca

digo que preciso descontroladamente que você compreenda a minha atual necessidade de não me comunicar por emails . . .. . . eu não sei o porquê da invasão explícita de um fluxo de consciência que me faz querer escrever um livro de farwest desde as 15 hs de hoje e também um desejo incontrolável de lhe escrever um carta que não seja virtual pois eu não sei misturar o mundo virtual com a realidade . . .. . .pode ser que estejam implicitamente unidos mas eu ainda não achei a união . . .. . ..o kierkegaard disse que é o eu que vem de deus mas eu acho que seja um eu infinito e por isso eu não sei ligar coisas materiais às fibras da nanotecnologia . . .. . .é porque eu impacientemente preciso de letras em um papel com tinta sem impressões modernas a laser e eu preciso de fungadas doídas por cada palavra escrita porque a dor de existir é tão linda no papel e eu preciso de dor e de desespero manchados em letras de forma ou de desenho e também preciso de qualquer outra vida que seja incrivelmente interessante e me faça esquecer de mim e me faça me largar completamente . . .. . ..como a janis dizia se você pode fazer isso então faça . . .. . .eu vou para a amazônia e tenho até amanhã pra lhe enviar a carta se você não desistir de recebê-la . . .. . .e quer saber? eu até lhe diria o meu endereço mas eu não sei mais onde eu estou e não é perdição é encontro . . .. . . escreva seu endereço que eu não mandarei cães assassinos ou bandidos de bang-bang embora eles estejam fervilhando na minha cabeça

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amazona Alongada

P.S. meu: A carta ainda não chegou. Minha amiga prometeu que junto enviaria uma grande surpresa, algo que guarda há tempos. Minha curiosidade multiplica a expectativa. Já nem vou conferir na caixinha de correio. Aguardo o porteiro interfonar informando que chegou para mim um volume que não passa no portão do prédio.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

AMOR EM GOTAS (sabe-se lá de quê!)

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Anga Mazle

Uma união estável. Ele: “Não chega a ser uma prisão.” Ela: “No máximo, um zoo.”

Dos nossos pontos em comum, relevantes eram só os das cicatrizes.

– Ela só sabe gritar comigo, dizem os vizinhos. Quanto a mim, bendita surdez.

– Ele só quer o que eu nunca tive ou o que já me levou.

Não transavam nem dormiam sem antes apagar todas as estrelas. Para isso, não poupavam baixezas.



Era o casal e seus fantasmas. No começo. Depois, eram só os fantasmas.

Dava para levarem bem o casamento. Ele era um saco. Ela, uma mala.

Tinha tanto homem na festa que ele, até lhe liberarem sua esposa, deu para uns dez.

Ele a comia como a uma uva. Hoje, passa.

A cada sapo que ela engole, ele vira um príncipe.



Ótimos de cama. Transam todas as noites em sonho.

Um homem tão dedicado que até pulga pro cão da esposa passava.

Uma mulher tão fiel que nunca traiu seus amantes com o marido.

A surra, ela perdoaria. O beijo depois, jamais.

Era um amor tão infantil que, no 69, um chupava o dedão do pé do outro.


. . . . . ... . . ... . . . . . . . Imagem 1: http://thehottestshit.blogspot.com/

. . . . . ... . . ... . . . . . . . Imagem 3: www.robertoferri.net/gallery