Tuca - O que é a liberdade para o senhor, Seu Juca?
Seu Juca - Uma coisa miúda e informe que incomoda a maioria das pessoas. Bem mais que um cisco no olho... Mas, se fosse preciso, eu daria os meus dois olhos por ela. Mesmo sabendo que essa fulustreca é arisca toda vida, mais escorregadia que lesma no cio... Eu acho que todos deviam se dedicar à sua própria liberdade de corpo e roupa!
Elza – E alma, o senhor quis dizer...
Seu Juca - Eu quis dizer roupa mesmo, pois andar pelado por aí é uma liberdade que dá cadeia. De mais a mais, não creio em alma. Acho até que certa feita eu apalpei uma no cinema. Sei lá, não dou certeza. Estava escuro, e na época eu pouco sabia sobre a anatomia feminina. (Ri, meio envergonhado) Hoje, felizmente, sei menos ainda.
Tuca – Felizmente? O senhor já não se interessa por mulher?
Seu Juca – Que isso! É a única coisa que me interessa. O tempo todo, até quando durmo. Por isso, quanto mais eu conseguir não saber sobre o corpo da mulher, melhor. É território sagrado, morada do mistério mais alto, da irrealidade mais profunda e verdadeira. Não cabe sondá-lo, profaná-lo com as asperezas dos questionamentos e conceitos. É dever do homem tratar essa sabedoria em carne e osso com a ignorância ampla e sedosa dos sonhos nunca dantes sonhados. (Elza e eu não contivemos um suspiro.) Infeliz daquele que percorre com os olhos a vastidão da nudez de uma mulher!
Anga – O senhor não olha para o corpo da mulher com quem transa?
Seu Juca – Se ela estiver nua, jamais! Para me despertar um desejo forte, devidamente incontrolável, a mulher tem de estar vestida de acordo. Um corpo feminino coberto de rendas e cetins fica mais nu, deslumbrantemente nu. A lingerie é o ponto de exclamação da nudez!... E quando esta finalmente nos é oferecida, ou é por nós conquistada, devemos fechar os olhos. Não por pudor, mas para ficarmos cegos. Cegos, compreendem?... Uma mulher nua pode ser vista dos pés à cabeça, de trás para frente, de fora para dentro, de dentro pra fora... mas só em braile!
Tuca – O senhor teve muitas mulheres, certo?
Seu Juca – Nenhuma, não, seu moço. Mas deixei que muitas me tivessem. Muitas. E continuo deixando. Sempre com o mesmo porém: quando elas me dizem... sou sua!.... eu pico a mula.
Anga – Medo, seu Juca?
Seu Juca – Muito. Não se deve ter uma mulher. Porque, assim, sentindo-se pertencida, ela se torna um tormento para si mesma, afunda num desconsolo atroz. É levada a descobrir aquela porção de nada que todos trazem dentro de si e geralmente não sabem, ou fingem não saber. A mulher deixa de ser quem ela era, não tem mais serventia nenhuma, nem para mim nem para si mesma. Como é forte, consegue sobreviver nesse horror anos a fio, a vida toda até. A não ser que você a liberte, livrando-a de você. Ou que ela resolva lhe trair, santo remédio para as asas que ela própria quebrou por você.
Tuca – E o senhor suporta bem isso, a traição?
Seu Juca – Não sei. Como eu disse, nunca fui dono de mulher nenhuma. Acho, entretanto, que deve ser mais fácil suportar o peso de uma galhada monumental do que ver o tempo todo a imagem lúgubre de um rosto feminino apagado, que não consegue mais erguer as comissuras labiais, mantendo a linha da boca emborcada até quando ri, se é que ainda ri. É terrível. Conhecem a Bette Davis?... A Jeanne Moreau?
Tuca – Duas grandes atrizes que adquiriram com o tempo esse desenho labial “emborcado” de que o senhor fala. Gosta de cinema?
Seu Juca – Gostava, gostava bem. Uma pena não haver mais nenhum por aí faz tempo.
Elza – Ainda há muitos, sim. Nos shoppings.
Seu Juca – Os cinemas estão nos shoppings? Que tragédia!... Ou os filmes andam uma bosta só ou, pior, o consumismo se sofisticou.
Elza – O senhor não gosta de shopping?
Seu Juca – Não. E desde o início, desde que os americanos começaram a exportar pro mundo todo essa geringonça monstruosa. Nunca vi um shopping por dentro. Não entro naquilo. De jeito nenhum. Nem morto, amarrado e amordaçado. Em supermercado, também não
Elza – Por quê?
Seu Juca – Ora, sei que não se pode chegar à perfeição, mas pra mim a feira livre era e é a perfeição possível nesse tipo de comércio. Tentaram ir além, deu nisso. Supermercado, shopping... a feira encarcerada! Ainda bem que o povo, para superar as dificuldades impostas pelos doutores da economia e do marquetingue (sic), criou o shopping a céu aberto, as aglomerações de camelôs que estão pintalgando de vida as ruas das grandes cidades.
Anga – Qual o segredo dessas iniciativas populares? Existiria um saber superior, instintivo, maior que o saber da ciência?
Seu Juca – A ciência não sabe nada. Tudo que ela pode fazer é colher e distribuir os frutos desse saber instintivo. Mas não, ela não se contenta com isso. Porque é constituída por um grupo, uma espécie de conselho... mau conselho!... que se reúne, amealha todo o saber instintivo recém-surgido e, entre um chazinho com bolacha e outro, fica debatendo o que é melhor, mais adequado para ser aplicado. Quando chegam... quando chegam!... a alguma conclusão, grande parte daqueles saberes já estão se deteriorando! E são esses produtos putrefatos que eles oferecem para consumo da sociedade.
Elza – Mas existem bons cientistas, pessoas criativas e bem intencionadas.
Seu Juca – Esses não são cientistas.
Anga – São o quê?
Seu Juca – Poetas, moça. E não há lugar para eles no “conselho”. Não que o conselho não os queira, eles é que não querem o conselho. Sabem que o conselho é a morte, enquanto a eles só interessa a vida, mesmo quando falam da morte. O poeta é um indivíduo. Ainda existem indivíduos, sabiam? São poucos, mas existem.
Anga – Só os poetas são indivíduos?
Seu Juca – Só.
Tuca – E os andarilhos, eles não são indivíduos?
Seu Juca – Eu sou. E os outros, provavelmente, também são. Sei lá. Não posso falar por eles, ser o porta-voz de uma categoria cuja virtude maior é justamente não se constituir como tal, é ser um todo feito de cada um por si e estamos conversados. Nada a ver com individualismo, hem! O individualista só existe no seio do grupo. Se não integramos grupo algum, podemos ser indivíduos. Não queremos impor nada à sociedade ou mesmo a outro indivíduo. Nossa filosofia se resume a um conceito que dispensa desdobramentos analíticos.
Elza – Qual é?
Seu Juca – Eu não encho o teu saco, tu não enches o meu.
Tuca – Se a seu ver só os poetas são indivíduos e o senhor diz que é um indivíduo, logo o andarilho seria também um poeta...
Seu Juca – Um poeta. Sim, todo andarilho é um poeta. Mas nem todo poeta é um andarilho. Assumidamente, quero dizer. Porque na essência eles o são, embora talvez sem se dar conta de que estão tão próximos desse estágio superior de vida. Nós, mais do que esses que teimam em ser poetas não-andarilhos, respeitamos a alergia purulenta que nos causa a convivência em família, turmas, associações, religiões, partidos políticos, reuniões de condomínio, etc.
Elza – O senhor acredita que a vida seja possível sem essas corporações?
Seu Juca – A vida não depende das corporações, elas é que dependem da vida, parasitando-a, sugando sua poderosa energia. Veja o caso dessa turma que luta pela preservação do meio ambiente. Que pretensão! Se julgam capazes de deter o rumo inexorável da história. A arrogância das arrogâncias! São tão estúpidos quanto os donos do poder, os que trabalham pelo fim da humanidade a curto prazo. Mas esses, pelo menos, merecem a minha admiração, por estarem agilizando, ainda que inconscientemente, uma vida melhor para o planeta, que enfim poderá se ver livre do Homem, esse lastimável produto da evolução patológica da ameba!
Tuca – E o senhor não vê nenhuma saída?
Seu Juca – Saída... saída....
(Seu Juca olha nos olhos do Tuca, mas focando seu olhar muito além do Tuca. De repente, desvia os olhos para fora do bar, como se tivesse avistado qualquer coisa lá no fim da rua. Enquanto nos viramos para olhar na mesma direção, ele se levanta. E sai, descendo a rua até a última esquina, onde dobra e desaparece. Demos por encerrada a entrevista. Tinha outra saída?)
Leia a primeira parte da entrevista, aqui.
Ilustração: do blog do artista plástico Hélio Jesuíno, aqui.