quinta-feira, 28 de junho de 2012

Pequenas iguarias pelo chão

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Fiophélio Nonato* . .
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(…)  Meu padrinho Celurives, que me criou desde a gênese da minha não-vida, não gostava que eu brincasse com bichinhos na terra do quintal lá de casa, não. Sabia que eu gostava de comê-los, principalmente os besouros e os pequenos caracóis, irresistíveis na sua maciez crocante. Aprendi desde muito cedo, por volta dos 10 meses de idade, quando já sabia engatinhar com desenvoltura, que essas iguarias têm hábitos, tiques e manias como os seres humanos. As joaninhas, por exemplo, se você demorar a mastigá-las, escapam para o céu da boca e nele se aferram com tal empenho que fica impossível removê-las com a língua. Se você, no entanto, ali deixá-las por alguns minutos, a ansiedade acaba por traí-las: cientes da gravidade da situação, começam a circular por toda a sua boca, pisando mais forte com o par de patas traseiro e emitindo estrilos – perceptíveis tão-somente pelo aguçado tato da mucosa humana –, como se a discutir a melhor estratégia para enfrentar o perigo iminente de morte. Já os caracóis, normalmente lerdos no caminhar, tornam-se lépidos dentro da boca humana, deslizando em alta velocidade pelas pirambeiras da língua, a tirar partido da mistura de saliva com sua própria baba de molusco: e assim esquiam tranqüilos e sorridentes, alheios à visão dos dentes que irão triturá-los.
A par dessa minha preferência por coleópteros e pequenos moluscos com casca, nunca rejeitei outros serezinhos que a terra me oferecia, nem mesmo as lacraias e escorpiões. Sabendo agarrá-los, de modo a evitar e depois extrair o perigoso ferrão, são frutos muito prazerosos: o gosto acre e rançoso logo é suplantado pelo agradável entorpecimento da língua que decorre do vazamento do veneno, inofensivo sem a ação da ferroada. No entanto, há que se conter a gula, posto que dois ou mais indivíduos dessas espécies peçonhentas, se embocados ao mesmo tempo, são capazes de planejar e executar em segundos uma vingança terrível: secretam uma enzima que transforma seu algoz em vítima de uma diarréia das mais dolorosas. Tal substância, a Ciência ainda não foi capaz de detectá-la, uma vez que é produzida apenas nesta exata ocasião: quando eles estão à beira da morte no cadafalso bucal de um ser humano. .(…)

*em Autobiografia de Um que Nunca Nasceu. . . .
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Ilustração: página de croquis dos Diários de Jean-Christof, cedida pelo blog Hélio Jesuíno & Cia.Ltda., com a anuência da Fundação Mano Cruz.

sábado, 23 de junho de 2012

Paisagem com dois túmulos e um cão assírio

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . .  Federico Garcia Lorca

. . . . . . . . . . . .  Amigo,
. . . . . . . . . . . .  Levanta-te para que ouças a uivar
. . . . . . . . . . . .  O cão assírio.
. . . . . . . . . . . .  As três ninfas do câncer estiveram bailando,  
. . . . . . . . . . . .  meu filho
. . . . . . . . . . . .  Trouxeram umas montanhas de lacre vermelho
. . . . . . . . . . . .  e uns lençóis duros onde estava o câncer 
. . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . .  . . adormecido.
. . . . . . . . . . . .  O cavalo tinha um olho no pescoço
. . . . . . . . . . . .  e a lua estava num céu tão frio
. . . . . . . . . . . .  que teve de rasgar o seu monte de Vênus
. . . . . . . . . . . .  e afogar em sangue e cinza os cemitérios antigos.
. . . . . . . . . . . .  Amigo,
. . . . . . . . . . . .  Desperta, que os montes ainda não respiram
. . . . . . . . . . . .  e as ervas de meu coração estão em outro sítio.
. . . . . . . . . . . .  Não importa que estejas cheio de água do mar.
. . . . . . . . . . . .  Amei por muito tempo um menino
. . . . . . . . . . . .  que tinha uma peninha na língua
. . . . . . . . . . . .  e vivemos cem anos dentro de uma faca.
. . . . . . . . . . . .  Desperta. Cala. Escuta. Ergue-te um pouco.
. . . . . . . . . . . .  O uivo
. . . . . . . . . . . .  é uma longa língua arroxeada que abandona
. . . . . . . . . . . .  formigas de espanto e licor de lírios.
. . . . . . . . . . . .  Já se aproxima da rocha. Não alongue suas raízes!
. . . . . . . . . . . .  Chega perto. Geme. Não soluces em sonho, amigo.
. . . . . . . . . . . .  Amigo!
. . . . . . . . . . . .  Levanta-te para que ouças uivar
. . . . . . . . . . . .  o cão assírio.
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