quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Shakespeare em drágeas de papel

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Mais um trecho da autobigrafia
daquele cara que nunca nasceu



Já postamos duas vezes aqui no blog trechos da Autobiografia de um que nunca nasceu, de Fiophélio Nonato. O trecho de hoje faz parte do primeiro dos três anexos do livro, e é o único que não tem título definido. Ou pelo menos assim me parece, pois há um título datilografado "Sementes híbridas de frutos estéreis" e riscado; e um segundo, escrito a lápis "Receitas para vencer na vida sem precisar nascer" e (mal) apagado com borracha. Fora isso, foi carimbado no alto da página o seguinte: "Arquivado e foda-se!" Mas esse mesmo carimbo aparece também em diversos capítulos do livro que têm título.

O texto que selecionamos é um dos poucos com mais de 15 linhas dentre os 23 que compõem o Anexo I. Vamos a ele:



A primeira vez que li Shakespeare eu mal completara meu primeiro ano de não-nascido. E ainda era analfabeto da sola dos pés para cima. Em português – porque, em espanhol, já começara a ler por influência dos meus sapatinhos de tricô Naique, e com um irretocável sotaque paraguaio. O inglês seiscentista, porém, eu o aprendi quase instantaneamente, desde que Hamlet começou a ser-me inoculado por Floris Bregh, uma bela morena que mora no Acre – numa aldeota onde, segundo ela mesma me contara por sinais de fumaça produzida por uma das queimadas que quase diariamente arrasam quarteirões inteiros de mata amazônica, "no verão o inferno é verde e o sol arde cada dia mais forte tentando, por enquanto em vão, amarelar tudo".

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Do 11º andar do jequitibá em que residia, até então preservado do fogo dos posseiros fazedores de pastos, Floris, como eu dizia, me inoculava Hamlet lançando doses redondas e certeiras de páginas da tragédia shakespeariana no quintal do meu semi-desabado casarão em Vila Valqueire, e justo na boca do bebê aqui – que por ali engatinhava à cata de caracóis e insetos para comer. Mas as bolinhas de Hamlet eram mais gostosas, e me chegavam como um raio ao coração e ao cérebro, órgãos que em nós, não-nascidos, são um só, aconchegado entre o estômago e o fígado, e nos proporciona uma sensação muito agradável de fome saciada quando ingerimos um texto que valha a pena, seja através da leitura convencional, seja muito mais através de petardos de páginas bem emboladinhas recebidos, goela abaixo, de uma bela mulher. Se você, leitor, por acaso não conhece Floris, nem outra mulher bonita com a sua mira miraculosa, experimente comer por si mesmo algum texto curto shakespeariano – um soneto, digamos, que não será refeição pesada, talvez até mais leve que um canapé light feito na hora por uma quituteira de bons bofes e más intenções sensuais. Caso ainda assim o bardo inglês não lhe passe pela garganta, intragável tanto quanto o são para muita gente a ostra (mesmo sem a concha), o caviar (mesmo sem ter de pagá-lo) e a buchada de bode (mesmo com o sal de fruta de logo após), não o coma: beba-o, que ele também sabe ser líquido, e denso e aveludado como um bom licor francês ou italiano; ou fume-o, e poderá desfrutar sabor e aroma superiores aos dos melhores charutos cubanos; ou aperte unzinho, se possível em seda bíblia subtraída, por exemplo sugestivo, a ‘A comédia dos erros’, e dê doisinhos básicos; ou então bata meio soneto numa carreira fina e curta e cafungue-o a plenos pulmões.

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Se nenhuma dessas práticas condenadas pela sociedade o atrai, nem mesmo a mais perigosa delas – a boa leitura! –, esqueça o cara e deixe-se chegar até ele por acaso, talvez tangenciando papos bêbados de balcão num boteco sórdido; talvez grampeando no ônibus a ladainha tricotada pelas duas velhinhas do banco da frente; talvez convidando a primeira bela (ou belo) que lhe sorrir no elevador a seguir direto à cobertura do prédio para caçar estrelas numa noite de céu nublado; talvez até mesmo em casa, postando-se diante da TV sintonizada num programa de auditório, para, armado de um naipe de canetas hidrocor, decalcar em traços rápidos sobre o monitor todas as caretas e trejeitos do apresentador, até que da imagem transmitida só reste algumas centenas de fímbrias luminosas a animar o emaranhado de riscos coloridos que você a ela superpôs, compondo uma espécie de obra impressionista em surreal mutação constante. Enfim, permita-se encontrar William Shakespeare – ou ser por ele encontrado – em qualquer lugar em que lhe der na telha estar: exceto talvez num teatro, e não com certeza no palco – onde o velho Bill, em sua grandeza plena, nunca pisou nem jamais pisará, fosse com seus próprios pés, fosse ou seja com os pés de uma companhia teatral, inclusive e principalmente as shakespearianas.

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6 comentários:

Múcio VAlentim disse...

Eu achava que a sequencia das postagens iria me fazer compreender melhor a fragmentação dos textos. Li a terceira, voltei as duas anteriores e nada... não conseguia conexão, era um cipoal de absurdos indecifráveis a qualquer abordagem, mesmo para um leitor experiente como eu que tem Finnegan’s wake como livro de cabeceira. Aí tive um insight — imprimi um dos textos, apertei um e fumei.
Maravilha!! o texto é definitivamenntwksn ic strahsj nusg io ustagüidf lkytiu mins sortajn. A kolajn qiuy hsoogd phantusn !!!
Grasu jasu koltro...
nvb

Teophanio Lambroso disse...

Sorte sua, meu caro Múcio. Porque eu já experimentei as lenga-lengas do Nonato de tudo que foi jeito. Até na veia. E nada, esse troço não me dá onda nenhuma. Não sei o que o Tuca vê de especial nessa figura sinistra, com seus textos mal acabados e desiguais, sem a menor coerência estilística. Mas, como é ele que manda nesta josta aqui...

JPVeiga - Variz da Meiga e Mariz Conzê disse...

Gostaria muito de escrever algo sobre o texto acima. Mas não sei ler... Só sei escrever e mau; daí...

Tuca Zamagna disse...

Não esquenta, JP. Esqueça o texto acima e escreva o que lhe der na telha, e compulsivamente, até cansar. Depois manda pra cá, que nós corrigimos o que for necessário e depois lemos tudo para você, e com o maior prazer!

um amigo disse...

abre o olho Tutuca, tem editora de olho no fiophelio.O tal do seu Juca tá fazendo jogo duplo...

Tuca Zamagna disse...

Não acredito, não, caro amigo oculto. Seu Juca Sem Fio é um louco dos mais confiáveis. Mas, se estiver mesmo fazendo jogo duplo, melhor, porque estará duplicando as chances de publicação do livro.