Mais um trecho da autobigrafia
daquele cara que nunca nasceu
Já postamos duas vezes aqui no blog trechos da Autobiografia de um que nunca nasceu, de Fiophélio Nonato. O trecho de hoje faz parte do primeiro dos três anexos do livro, e é o único que não tem título definido. Ou pelo menos assim me parece, pois há um título datilografado – "Sementes híbridas de frutos estéreis" – e riscado; e um segundo, escrito a lápis – "Receitas para vencer na vida sem precisar nascer" – e (mal) apagado com borracha. Fora isso, foi carimbado no alto da página o seguinte: "Arquivado e foda-se!" Mas esse mesmo carimbo aparece também em diversos capítulos do livro que têm título.
O texto que selecionamos é um dos poucos com mais de 15 linhas dentre os 23 que compõem o Anexo I. Vamos a ele:
A primeira vez que li Shakespeare eu mal completara meu primeiro ano de não-nascido. E ainda era analfabeto da sola dos pés para cima. Em português – porque, em espanhol, já começara a ler por influência dos meus sapatinhos de tricô Naique, e com um irretocável sotaque paraguaio. O inglês seiscentista, porém, eu o aprendi quase instantaneamente, desde que Hamlet começou a ser-me inoculado por Floris Bregh, uma bela morena que mora no Acre – numa aldeota onde, segundo ela mesma me contara por sinais de fumaça produzida por uma das queimadas que quase diariamente arrasam quarteirões inteiros de mata amazônica, "no verão o inferno é verde e o sol arde cada dia mais forte tentando, por enquanto em vão, amarelar tudo".
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Do 11º andar do jequitibá em que residia, até então preservado do fogo dos posseiros fazedores de pastos, Floris, como eu dizia, me inoculava Hamlet lançando doses redondas e certeiras de páginas da tragédia shakespeariana no quintal do meu semi-desabado casarão
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Se nenhuma dessas práticas condenadas pela sociedade o atrai, nem mesmo a mais perigosa delas – a boa leitura! –, esqueça o cara e deixe-se chegar até ele por acaso, talvez tangenciando papos bêbados de balcão num boteco sórdido; talvez grampeando no ônibus a ladainha tricotada pelas duas velhinhas do banco da frente; talvez convidando a primeira bela (ou belo) que lhe sorrir no elevador a seguir direto à cobertura do prédio para caçar estrelas numa noite de céu nublado; talvez até mesmo em casa, postando-se diante da TV sintonizada num programa de auditório, para, armado de um naipe de canetas hidrocor, decalcar em traços rápidos sobre o monitor todas as caretas e trejeitos do apresentador, até que da imagem transmitida só reste algumas centenas de fímbrias luminosas a animar o emaranhado de riscos coloridos que você a ela superpôs, compondo uma espécie de obra impressionista em surreal mutação constante. Enfim, permita-se encontrar William Shakespeare – ou ser por ele encontrado – em qualquer lugar em que lhe der na telha estar: exceto talvez num teatro, e não com certeza no palco – onde o velho Bill, em sua grandeza plena, nunca pisou nem jamais pisará, fosse com seus próprios pés, fosse ou seja com os pés de uma companhia teatral, inclusive e principalmente as shakespearianas.
6 comentários:
Eu achava que a sequencia das postagens iria me fazer compreender melhor a fragmentação dos textos. Li a terceira, voltei as duas anteriores e nada... não conseguia conexão, era um cipoal de absurdos indecifráveis a qualquer abordagem, mesmo para um leitor experiente como eu que tem Finnegan’s wake como livro de cabeceira. Aí tive um insight — imprimi um dos textos, apertei um e fumei.
Maravilha!! o texto é definitivamenntwksn ic strahsj nusg io ustagüidf lkytiu mins sortajn. A kolajn qiuy hsoogd phantusn !!!
Grasu jasu koltro...
nvb
Sorte sua, meu caro Múcio. Porque eu já experimentei as lenga-lengas do Nonato de tudo que foi jeito. Até na veia. E nada, esse troço não me dá onda nenhuma. Não sei o que o Tuca vê de especial nessa figura sinistra, com seus textos mal acabados e desiguais, sem a menor coerência estilística. Mas, como é ele que manda nesta josta aqui...
Gostaria muito de escrever algo sobre o texto acima. Mas não sei ler... Só sei escrever e mau; daí...
Não esquenta, JP. Esqueça o texto acima e escreva o que lhe der na telha, e compulsivamente, até cansar. Depois manda pra cá, que nós corrigimos o que for necessário e depois lemos tudo para você, e com o maior prazer!
abre o olho Tutuca, tem editora de olho no fiophelio.O tal do seu Juca tá fazendo jogo duplo...
Não acredito, não, caro amigo oculto. Seu Juca Sem Fio é um louco dos mais confiáveis. Mas, se estiver mesmo fazendo jogo duplo, melhor, porque estará duplicando as chances de publicação do livro.
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