– Você nunca teve vontade de conhecer a vida lá fora? Viajar, correr o mundo?
– Faço isso o tempo todo, desde que meus olhos se abriram para a inconsciência – diz, pousando o arco de bordar sobre o sofá da ampla mas aconchegante sala de sua casa em Amherst, Massachusetts.
O jeito firme mas delicado de falar pinta suas feições com uma beleza da qual eu jamais suspeitara. Se ela se pintasse de fato, e se cobrisse o corpo esguio de trato e sedas, seria tão linda quanto qualquer mulher linda. Mas talvez deixasse de ser a deusa que tanto nos seduz, a mim e a milhões de devotos, ao longo de pelo menos um século.
– O mundo está dentro de você, Emily...
– Está dentro de cada ser humano, embora muitos não atinem ser ele aquele trambolho que lhes pesa e queima as entranhas.
– Não é nada fácil olhar para dentro de si. E quem o faz, em geral procura apenas se ver, nada mais.
– E jamais se verá.
– Você consegue se ver?
Sorri, dicretamente. Levanta-se do sofá. O longo e austero vestido de organza estofado de anáguas farfalha enquanto ela caminha até a janela mais próxima. Descerra as cortinas, abre uma das bandas. O sol da tarde alaranja todo o ambiente. Emily apóia-se no parapeito e contempla o verde florido de maio em The Homestead.
– Emily... Emily... Emily!
Acordo ensopado de suor, coberto pelo sol de verão que me espreita por sobre o Morro dos Cabritos. Corro até a varanda, sem me dar conta de que estou inteiramente nu. Observo a face de pedra do morro, ainda livre do sol direto, ainda arroxeada pela umidade da chuva da véspera. Meus olhos escalam lentamente o paredão, até se deterem em algo pequeno, bem pequeno que se move lá quase no topo do morro. Parece ser um homem. Sim, é um homem.
Será... será que sou eu?
.
23 comentários:
Fascinante, Tuca. Um sonho que eu adoraria ter. Que tenho, na verdade, né? Para ter qualquer sonho, basta sonhar...
Bjs
Amei.
Agora posso dormir.
Grata.
Um abraço da Marquesa.
Eis que ao nosso mais descontraído despertar nos encontramos lá onde brota singular indagação.
Cadinho RoCo
Ah, como é bom encontrar Emily Dickinson num texto tão emilymente lírico e surreal.
Beijos, querido
Rapaz, os marcadores já dizem tudo. Que viagem! Este eu jamais poderia pré-plagiar! Rs. Tem o selo de segurança anti-cópia pré-cognitiva direto da fábrica da sua incrível imaginação. Hum, acho que nunca usei tantos prefixos de uma só vez.
Abração!
Uau, que viagem fantástica!
Será que sai uma continuação, com direito a poema inédito da Emily?
Beijo
Thanks for following! Nice Blog :)
Realment, he quedat hipnotitzat
Oh! Emily
petons
Gostei muito do conteúdo do blog, penso que a blogsfera só tem a ganhar com saites assim.
Great blog!
Happy new year 2011!!!
Ciao ciao from Rome
Caramba!!!Qué texto!!!. Descontracturado, intenso.
Felicidades!!!
Muito bom, Tuca.
Se você não se viu direito lá no alto da pedra, pelo menos seus vizinhos o viram peladão na varanda!
Abração
A Aline me salvou, Emily Dickson e não Bronte, como me passou pela cabeça. Adoro este estilo de crônica. Brilhante, a realidade se manifestando.
Tuca, E.D. é fantasticamente fantástica. Acho que sou eu.
Beijos
Fico feliz que tenha gostado de Noturno. Volte mais vezes, para ler o que escrevo por lá. Eu estou sempre por aqui. Mesmo que silenciosamente.
Abraços, Ana
pode ser que seja...
"A Ausência desincorpora - e assim faz a Morte
Escondendo os indivíduos da Terra
A Superstição ajuda, tal como o amor -
A Ternura diminui à medida que a experimentamos"
Este foi o primeiro poema de Emily Dickinson que li. Amor à primeira vista. Ela é genial.
Tienes un hermoso blog.
Saludos
Parece um coração atingido por um pássaro.
bjs.
Sim, eras tu, correndo mundo! Percebes?
Um de ti ficou ali, nu, como sempre ficamos quando estamos em nós. O outro foi ganhar mundo. E sabe-se lá as vestes, os véus que usou para aquela escalada. Pouco importa, nosso outro sempre volta. Relata a experiência, dá a escolher o que acrescenta, despe-se, e mergulha no aconchego do em si.
Depois me conta o que ele te trouxe de lá.
Ah... Tuca! Meu período de férias é o culpado pela falta do oxigênio. Saiba: o escafandro que levei na memória me foi pouco, vim aqui pegar reserva para os dias que ainda tenho de férias. DS e Tuca = necessários.
Beijo grande, saudade,saudade, saudade, entendeste? S-a-u-d-a-d-e!
Tuca,
Li várias vezes. Amei. Sem palavras. Quem é o homem lá fora, correndo? Quem é ela na janela? Ela borda o desenho de si mesma?
Lindo, lindo!
Um abraço, saudades.
Suzana/LILY
Antes de mais queria desejar bom ano atodos aqui.
Muito bom o post.
adorei.
Lá no sentinela tem um album que vale a pena ouvir.
abraços.
Faço isso o tempo todo, desde que meus olhos se abriram para a inconsciência...
tem toda razão, o meu esta dentro de nós e só a nós mesmos cabe decidir por onde a alma e a mente vagueia...
Lindo Texto
Postar um comentário