sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Será que sou eu?

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– Você nunca teve vontade de conhecer a vida lá fora? Viajar, correr o mundo?

– Faço isso o tempo todo, desde que meus olhos se abriram para a inconsciência ­­– diz, pousando o arco de bordar sobre o sofá da ampla mas aconchegante sala de sua casa em Amherst, Massachusetts.

O jeito firme mas delicado de falar pinta suas feições com uma beleza da qual eu jamais suspeitara. Se ela se pintasse de fato, e se cobrisse o corpo esguio de trato e sedas, seria tão linda quanto qualquer mulher linda. Mas talvez deixasse de ser a deusa que tanto nos seduz, a mim e a milhões de devotos, ao longo de pelo menos um século.

– O mundo está dentro de você, Emily...

– Está dentro de cada ser humano, embora muitos não atinem ser ele aquele trambolho que lhes pesa e queima as entranhas.

– Não é nada fácil olhar para dentro de si. E quem o faz, em geral procura apenas se ver, nada mais.

– E jamais se verá.

– Você consegue se ver?

Sorri, dicretamente. Levanta-se do sofá. O longo e austero vestido de organza estofado de anáguas farfalha enquanto ela caminha até a janela mais próxima. Descerra as cortinas, abre uma das bandas. O sol da tarde alaranja todo o ambiente. Emily apóia-se no parapeito e contempla o verde florido de maio em The Homestead.

– Emily... Emily... Emily!

Acordo ensopado de suor, coberto pelo sol de verão que me espreita por sobre o Morro dos Cabritos. Corro até a varanda, sem me dar conta de que estou inteiramente nu. Observo a face de pedra do morro, ainda livre do sol direto, ainda arroxeada pela umidade da chuva da véspera. Meus olhos escalam lentamente o paredão, até se deterem em algo pequeno, bem pequeno que se move lá quase no topo do morro. Parece ser um homem. Sim, é um homem.

Será... será que sou eu?

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23 comentários:

Freda disse...

Fascinante, Tuca. Um sonho que eu adoraria ter. Que tenho, na verdade, né? Para ter qualquer sonho, basta sonhar...
Bjs

Anônimo disse...

Amei.
Agora posso dormir.
Grata.
Um abraço da Marquesa.

Cadinho RoCo disse...

Eis que ao nosso mais descontraído despertar nos encontramos lá onde brota singular indagação.
Cadinho RoCo

Aline Chaves disse...

Ah, como é bom encontrar Emily Dickinson num texto tão emilymente lírico e surreal.

Beijos, querido

Marcantonio disse...

Rapaz, os marcadores já dizem tudo. Que viagem! Este eu jamais poderia pré-plagiar! Rs. Tem o selo de segurança anti-cópia pré-cognitiva direto da fábrica da sua incrível imaginação. Hum, acho que nunca usei tantos prefixos de uma só vez.

Abração!

Luisa Queiroz disse...

Uau, que viagem fantástica!

Será que sai uma continuação, com direito a poema inédito da Emily?

Beijo

Julia disse...

Thanks for following! Nice Blog :)

Anônimo disse...

Realment, he quedat hipnotitzat


Oh! Emily


petons

JAIRCLOPES disse...

Gostei muito do conteúdo do blog, penso que a blogsfera só tem a ganhar com saites assim.

BExCLUSIVE MAGAZINE disse...

Great blog!
Happy new year 2011!!!

Ciao ciao from Rome

vico gonz disse...

Caramba!!!Qué texto!!!. Descontracturado, intenso.

Felicidades!!!

Deco disse...

Muito bom, Tuca.

Se você não se viu direito lá no alto da pedra, pelo menos seus vizinhos o viram peladão na varanda!

Abração

Thiago Quintella de Mattos disse...

A Aline me salvou, Emily Dickson e não Bronte, como me passou pela cabeça. Adoro este estilo de crônica. Brilhante, a realidade se manifestando.

Regina Belisario disse...

Tuca, E.D. é fantasticamente fantástica. Acho que sou eu.

Beijos

onzepalavras disse...

Fico feliz que tenha gostado de Noturno. Volte mais vezes, para ler o que escrevo por lá. Eu estou sempre por aqui. Mesmo que silenciosamente.

Abraços, Ana

tempus fugit à pressa disse...

pode ser que seja...

Laila disse...

"A Ausência desincorpora - e assim faz a Morte
Escondendo os indivíduos da Terra
A Superstição ajuda, tal como o amor -
A Ternura diminui à medida que a experimentamos"

Este foi o primeiro poema de Emily Dickinson que li. Amor à primeira vista. Ela é genial.

Guille Silva disse...

Tienes un hermoso blog.

Saludos

Bípede Falante disse...

Parece um coração atingido por um pássaro.
bjs.

Maria Janice disse...

Sim, eras tu, correndo mundo! Percebes?

Um de ti ficou ali, nu, como sempre ficamos quando estamos em nós. O outro foi ganhar mundo. E sabe-se lá as vestes, os véus que usou para aquela escalada. Pouco importa, nosso outro sempre volta. Relata a experiência, dá a escolher o que acrescenta, despe-se, e mergulha no aconchego do em si.
Depois me conta o que ele te trouxe de lá.

Ah... Tuca! Meu período de férias é o culpado pela falta do oxigênio. Saiba: o escafandro que levei na memória me foi pouco, vim aqui pegar reserva para os dias que ainda tenho de férias. DS e Tuca = necessários.

Beijo grande, saudade,saudade, saudade, entendeste? S-a-u-d-a-d-e!

Suzana Guimarães disse...

Tuca,

Li várias vezes. Amei. Sem palavras. Quem é o homem lá fora, correndo? Quem é ela na janela? Ela borda o desenho de si mesma?

Lindo, lindo!

Um abraço, saudades.

Suzana/LILY

Rodrigo S disse...

Antes de mais queria desejar bom ano atodos aqui.

Muito bom o post.
adorei.

Lá no sentinela tem um album que vale a pena ouvir.
abraços.

Ana disse...

Faço isso o tempo todo, desde que meus olhos se abriram para a inconsciência...
tem toda razão, o meu esta dentro de nós e só a nós mesmos cabe decidir por onde a alma e a mente vagueia...

Lindo Texto