quinta-feira, 15 de abril de 2010

Onze contos de réis

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1. Sereia

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Conheceu uma sereia. Se apaixonou, no ato, pela metade boa de cama. E comeu, frita, a metade que não tinha espinhas e falava demais.

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2. A queda

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Escreveu o bilhete de suicida num guardanapo de papel colocado sobre o peitoril da janela de seu conjugado no 17º andar. Depois de assinar, embolou o guardanapo, jogou a bolinha lá embaixo e voltou para a frente da TV.

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3. O consumista

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Comprava tudo que via pela frente. Dinheiro não era problema. Mas espaço, sim. Onde guardar, por exemplo, a tuba, o rinoceronte e a manada de deputados?

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4. Como sempre

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Agora, ali, era tempo de plantar. Como sempre, ele juntou tudo que nunca colheu e partiu.

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5. Dúvida

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Talvez nem fosse um cadáver. Pode ser que eu não tenha avaliado bem, ou que o espelho estivesse embaçado.

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6. A muralha

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De repente, o abismo. Chegou a pensar em voltar. Mas como, se atrás de si tinha aqueles milhões de seguidores que foi conquistando ao longo de anos, desde que resolvera se tornar guru?

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7. Coerência

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Eu pago tudo com dinheiro falso, sim. Queriam o quê? Minha filha alisa e oxigena o cabelo toda semana, meu filho não sai de casa sem as lentes de contato azuis que vive perdendo, e minha mulher faz tanto implante de silicone que, se cair no chão, quica.

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8. A mais venenosa

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Ei-la, a cobra mais venenosa do mundo! Se ela picar, a pessoa morre em poucos segun...

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9. O taxidermista

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Aprendeu que antes de empalhar um animal é necessário, para uma conservação mais duradoura da peça, pincelar sabão arsenical pelo menos duas vezes por todo o lado interno da pele. É o que faz, dez, quinze vezes, quando empalha seus desafetos.

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10. Orgulho

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O cão, só de olho, à espera de qualquer migalha de pelanca, mas eu não lhe dei nada. Quando a alcatra estava limpinha, vacilei, deixei-a cair no chão e ele me impediu de apanhá-la, rosnando. Não se apiedou do meu ar desconsolado: levantou a perna, mijou na carne e foi dormir no seu canto.

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11. Pontualidade

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Todo dia o despertador do celular toca às 6 da manhã, em ponto. Ele acorda, desliga a chamada, renova o serviço e volta a dormir. Até às 6 da manhã, em ponto.

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9 comentários:

Aline Chaves disse...

Uma delícia seus contos de réis, Tuca. O último, Pontualidade, é tudo que ando precisando fazer...

Celinha H disse...

Bem machista esse conto da Sereia, hein! Mas pela qualidade dos outros, tá perdoado.

Mendonça disse...

Muito bom, Tuca! Você publica coisa assim no twitter?

Tuca Zamagna disse...

Eu também, eu também, Aline.

Só meio machista, Celinha. Que a metade peixe o cara trata com todo respeito, né?

Pro twitter, Mendonça, meus continhos estão bem gigantescos.

JPVeiga - Variz da Meiga e Mariz Conzê disse...

Zensassional!
JP

Deco disse...

Ótimos esses micro-contos Tuca! O do cachorro é do cacete!

Tuca Zamagna disse...

Valeu pela dica da foto, JP!

Também gosto desse cão com alma de gato, Deco.

Regina Conde disse...

Gosto quando você é mais lírico, como em "Como sempre". Mas já senti por algumas de suas postagens anteriores, que vou ter de me virar para garimpar o lírico que você esconde por baixo dessa crosta de humor corrosivo e às vezes perverso...

Lupe disse...

Gosto de contos curtinhos. E sabia, moço, que você leva jeito pra isso?...Brincadeira, gostei muito!