sábado, 10 de abril de 2010

Campos de Carvalho vive!

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Hoje, 10 de abril de 2010, faz 12 anos que o escritor Walter Campos de Carvalho nasceu pela segunda vez. Por sua importância ímpar na literatura brasileira e, sobretudo, porque parece que ele está se saindo muito bem nessa aventura que poucos conseguem desempenhar a contento – a de viver uma segunda vida, e direto, sem o intervalo regulamentar para descanso no vestiário – é que estamos aqui, prontos para entrevistá-lo.

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. . . . . . . . . . – Diga lá, Walter. Tudo em riba com este já adolescente coração ateu?

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. . . . . . . . . . . . . . . .. “Meu coração é como o frio espectro de Is,

. . . . . . . . . . . . . . . .. a submersa:

. . . . . . . . . . . . . . . .. cobrem-no turvas águas silenciosas

. . . . . . . . . . . . . . . .. e a fluida fauna dos pecados e das penas

. . . . . . . . . . . . . . . .. que eu vivi outrora, quando vivo.

. . . . . . . . . . . . . . . .. Tudo é profundo, inerte, escuro,

. . . . . . . . . . . . . . . .. neste meu grande mundo extinto,

. . . . . . . . . . . . . . . .. e é em vão que ainda perpassam sobre os seus escombros

. . . . . . . . . . . . . . . .. sombras de sonhos, lívidas, incertas,

. . . . . . . . . . . . . . . .. como peixes sonâmbulos.

. . . . . . . . . . . . . . . .. De quando em vez, porém,

. . . . . . . . . . . . . . . .. sinto nascer de mim, como de um estranho abismo,

. . . . . . . . . . . . . . . .. cantos plangentes, mil vozes em coro,

. . . . . . . . . . . . . . . .. que me surpreendem e animam como deuses

. . . . . . . . . . . . . . . .. ou me apavoram.

. . . . . . . . . . . . . . . .. Não sei como explicar ninguém o sabe –

. . . . . . . . . . . . . . . .. esses cantos funéreos ou divinos

. . . . . . . . . . . . . . . .. que assim despertam e vibram no meu peito,

. . . . . . . . . . . . . . . .. em meio à grande e densa noite de minha alma,

. . . . . . . . . . . . . . . .. como sinos submersos...”

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. . . . . . . . . . – Este é o poema que dá título ao livro inédito Os sinos de Is, que você escreveu aos 18 anos...

. . . . . . . . . . “Aos 18? Então, no máximo, ainda o escreverei, pois hoje, como há décadas ou séculos, tenho 3 anos... Quanto ao livro, não é inédito, apenas não o publiquei. Mas permiti que meu amigo Heleno o xerocasse e...”

. . . . . . . . . – Ele distribuiu cópias para os seus fãs do Brasil inteiro...

. . . . . . . . . . “Do Brasil, não sei, mas da Bulgária, certamente.

. . . . . . . . . – Então a Bulgária existe?

. . . . . . . . . . “Não, creio que não. Mas os búlgaros... ah, esses estão por toda parte!

. . . . . . . . . – À procura da Bulgária...

. . . . . . . . . . “Nunca! Eles são os únicos que têm certeza de que ela não existe. Porque até eu, quando o céu fica nublado ou o telefone toca e é engano, tenho lá minhas dúvidas.”

. . . . . . . . . – Você nasceu em Uberaba, morou em São Paulo, Rio, Petrópolis, de novo em São Paulo e hoje...

. . . . . . . . . . “Moro na Bulgária.”

. . . . . . . . . . Por acaso, está querendo dizer que você também não existe?

. . . . . . . . . . “Eu nunca existi.”

. . . . . . . . . . – Você já disse e escreveu isso várias vezes. Mas eu sempre pensei que fosse brincadeira.

. . . . . . . . . . “E é. Brincar é essencial: a brincadeira é o único antídoto contra a existência – como a entendem os que pensam que existem. Por sorte, nasci clown e morrerei clown, embora a vida toda tenha sido um mero funcionário público. (exaltado:) (Todos os funcionários públicos são meros, quando deveriam ser melros!) Sou eternamente grato a um crítico que certa vez me chamou de clown (cochicha, desconsolado:) ­(nem a minha própria mãe me chamou assim) – como sou grato aos que me chamaram de palhaço com segundas intenções ou mesmo com terceiras. Antes de morrer ainda hei de armar o meu pavilhão auricular, isto é, dourado, em todas as praças do mundo e dele partir como um bólido rumo a todas as constelações, pregando a hilaridade e a língua de fora à boa maneira de Einstein e dos enforcados: ASSIM!”

. . . . . . . . . . Nossa, sua língua quase tocou o gogó. Você é bem melhor nisso que o Einstein.

. . . . . . . . . . “Que isso, não diga uma coisa dessas! Se tivesse a língua dele eu lamberia os meus pés.

. . . . . . . . . . – Falando nisso, você fala várias línguas, né?

. . . . . . . . . . Todas.

. . . . . . . . . . – Todas?

. . . . . . . . . .“As vivas, que fique bem claro. Porque não se deve falar as línguas mortas. Latim, grego antigo, copta... todas dão mau-hálito. Pelo menos é o que parece: quando você começa a falar uma delas com as pessoas na rua ou mesmo dentro da srua própria casa, todos lhe viram a cara."

. . . . . . . . . . – Vai ver, pensam que você é louco.

. . . . . . . . . . “Há quem me tome por louco e eu mesmo já me tomei. Mas basta uma visita ao hospício para me convencer – desgraçadamente – do contrário. É como se fosse um lobo vestido com a pele de um cordeiro: expulsam-me só pelo faro. O título do livro que estou escrevendo no momento é exatamente Maquinação da Máquina, Especulação de Espelho. Assim como a 4ª Sinfonia de Charles Ivens exige a presença de três maestros para ser bem interpretada, assim também penso que esse meu novo livro, para ser bem compreendido, deva ser lido simultaneamente por três leitores.”

. . . . . . . . . . – Muito interessante. Mas como evitar o problema daquele que lê mais rápido, que chega ao fim da página e tem de ficar esperando os outros dois para poder virá-la?”

. . . . . . . . . . “Organização, estratégia. Um leitor começa pelo início do livro, outro pelo fim e o terceiro pelo meio.”

. . . . . . . . . . – Genial. Mas, e o do meio, deve ler em direção ao início ou em direção ao final?

. . . . . . . . . . “Isso fica a critério dele. Se for um bom leitor, certamente tomará as duas direções ao mesmo tempo."

. . . . . . . . . . – O olho direito vai para o fim, o esquerdo para o início...

. . . . . . . . . . “Exato. Ou o contrário, se ele for estrábico.”

. . . . . . . . . . – Tem certeza que não é melhor cada um ler o livro sozinho?

. . . . . . . . . . “Um homem só, ou vira anarquista ou vira louco. E mais: esqueça a primeira pessoa do singular, se preciso faça a barba fora de casa, compre um túmulo e mande gravar nele o seu nome, e o sobrenome, com retrato de criança e de adulto para evitar dúvidas, e coloque-o no ponto mais visível do cemitério – se possível em todos os cemitérios da redondeza, um em cada um, dois em cada um se o permitir a lei e mesmo que não o permita. Pode parecer um esbanjamento, mas são tantos os eus atrás de um simples eu que a medida se impõe, e mais se imporia se o governo não fosse tão obtuso, e os vizinhos, e a igreja, e todos os que se contentam com um nome para definir o indefinível e o caos.”

. . . . . . . . . . – Você não acredita em Deus, né?

. . . . . . . . . . Não, mas se você acredita, pergunte a ele se acredita em mim. Enquanto isso, aproveito para ir ao banheiro.

. . . . . . . . . . – Mas você conheceu o Diabo...

. . . . . . . . . . “Nunca. Não fomos apresentados, sequer trocamos um aceno. Mas isto me lembra aquela noite, verídica, em que eu fui se não o protagonista pelo menos o agonista – e, para ser sincero, a única testemunha. Embora se tenha passado comigo, acredito nela piamente. Faz sete anos, poderia fazer sete séculos ou sete minutos: eu deitado, no pré-albor de um domingo igual a tantos, o umbigo voltado para o teto, aquele corpo morto ao lado, o mesmo de sempre. Acordo e vejo-O nitidamente à minha frente, junto à parede, de pé, fitando-me, fitando-me: reconheci-O como se reconhece alguém diante de um espelho, sem um segundo de hesitação: nenhum medo, nenhuma surpresa. Era, e é, todo negro, um verdadeiro príncipe etíope, só os olhos em brasa para identificá-Lo, sem pálpebras, e sem sequer supercílios: e FITANDO-ME, agora com um quase sorriso. Durou talvez um minuto a visão, nem isso: mas ainda hoje me ofusca, me enlouquece, tira-me da minha órbita ou de qualquer órbita, como só Lázaro talvez depois que lhe arrombaram o sepulcro: dia após dia a mesma Noite sempre.

. . . . . . . . . . “Preciso ir ao banheiro.”

. . . . . . . . . . – A convivência, a vida em sociedade o repugna, certo?

. . . . . . . . . . “Errado. A tribo de que não faço parte tem lá suas coisas interessantes, que bem merece que eu as retrate. Eu compus há tempo um hino desportivo, tão do gosto dos que ela tanto aprecia, e que eu gosto de ouvi-la cantar sob o sol da tarde, na praça regurgitante, em dia de festa. Começa assim:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ‘Umbanda surubiu Piranha

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Socatu jurumirim petiba...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sucupira! Sucupira!...’

. . . . . . . . . . – Tem no hino alguma palavra em português de Portugal?

. . . . . . . . . . “Se o sr. não me deixar ir urinar, não respondo – nem respondo pelas conseqüências.”

. . . . . . . . . . – O banheiro é ali, naquela porta à direita..

. . . . . . . . . . Enquanto o Campos não volta do meu quarto – entrou na porta à esquerda e não na à direita – vou reproduzir outro poema inédito, O Argonauta, de 1949, no qual ele expande os caminhos abertos na poesia da adolescência, em direção ao surrealismo mais radical que viria com seus romances. Aqui, condiciona o Ser ao Escrever e insere a vida, metalingüisticamente, no espaço infinito da palavra. (Como o original foi apenas manuscrito e dele só tenho uma cópia precária, “funambulei” um bocado para decifrar o meio apagado adjetivo funambulesco.)

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. . . . . . . . . . “Não devia estar apagado, logo ele, funambulesco, que é tão menos usado do que deveria.”

. . . . . . . . . . – Ah, voltou!

. . . . . . . . . . “Queira me perdoar, não era minha intenção. Mas não pude partir. Não encontrei nada em seu banheiro que se assemelhe a uma nau de cruzeiro ou mesmo a um vaso de guerra ou um vaso sanitário."

. . . . . . . . . . – Poxa, eu é que lhe peço perdão por esse empecilho. Não sabia que pretendia partir.

. . . . . . . . . . “Empecilhos só existem para quem quer chegar, jamais para quem quer partir.”

. . . . . . . . . . – Hummm, entendi: O Argonauta...

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. . . . . . . . . . .. . . . . . . . Empreenderei esta viagem no meu barco

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Imaginário.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Comigo irá minha alma imperscrutável,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Aberta aos grandes mares tenebrosos e à carícia

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .De ventos invisíveis como deuses

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Que enfunam as velas frágeis e despertam

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Os ouvidos sutis.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Nem sombra eu levarei nessa epopéia

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Sobre-humana

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Por ígneas terras e candentes sóis,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Longe do mundo estreito e dos sonhos mortais

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Que ainda ontem me envolviam e me prendiam

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Como a um cadáver.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . .Eu singrarei tranqüilo ao som das muitas vagas

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Ignotas,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Sozinho sem minha alma atenta e em êxtase,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Como se fora ao encontro de uma Pátria, e não apenas

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .De uma ilusão a mais ou de um desterro.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Tudo que há de restar desse meu sonho informe

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .E funambulesco

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Será uma breve esteira apenas, sem beleza,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Em meio ao grande mar profundo e eterno,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Qual tênue flecha a apontar o Infinito:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .– Estes meus versos.

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Esta entrevista foi montada com:

– trechos de duas das raras entrevistas concedidas por Campos de Carvalho (à revista O Cruzeiro, em 1969, e a Heleno Álvares, em 96, que a publicou no Correio de Araxá);

– informações e o fac-simile de O Argonauta, extraídos de Campos de Carvalho: Inéditos, Dispersos e Renegados, dissertação inicial de Geraldo Noel Arantes para o Mestrado no IEL/UNICAMP, 2005;

– trechos e sugestões dos romances Tribo, A lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, A chuva imóvel e O púcaro búlgaro;

­– o poema-título de Os sinos de Is;

– trecho de crônica publicada no Pasquim;

– alguma criação enxerida, minha, tentando tangenciar as concepções estéticas e filosóficas do escritor.

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Agradecimentos especiais ao autor (que não pude identificar) da inspirada foto que abre esta postagem, e ao poeta e jornalista Heleno Álvares, que enviou-me pelo correio cópias do inédito Os Sinos de Is e do raríssimo romance Tribo, esgotado há mais de 50 anos. (Ainda não chegaram, Heleno! Queira Walter que o carteiro não se tenha afogado nas enchentes deste meu Rio de Abril...)

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12 comentários:

Aline Chaves disse...

Fantástico, Tuca. Tão surreal, tão Campos de Carvalho que parece que realmente aconteceu!

Deco disse...

Genial Tuca! Bem no clima de Vaca de Nariz Sutil que li há poucos meses.

Aloisio Trobinski disse...

Incrível o Campos de Carvalho! O papo sobre o livro lido a três ficou hilário, ri muito imaginando o vesgo lendo o livro!

Lena Monari disse...

Eu, hein! Cada um mais doido que o outro...
Bjs

Natalia disse...

O máximo, Tuca! Te falei que comprei pela net "A lua", "A vaca", "O púcaro" e "A chuva", né? Ia comprar o livro das crônica, também, mas ganhei do meu tio todas as crônicas que o Campos publicou no Pasquim. Ele recortou tudo na época e depois encadernou, um luxo! Bj

Papricantis disse...

Parabéns!!! Homenagem criativa. Saudades desse mestre, único, Campos de Carvalho. Como é bom vê-lo influenciando tanta gente boa por aqui. Ainda bem que sua obra NUNCA vai morrer... Abraços e conheça meu blog!

Mendonça disse...

Ótima entrevista, bem camposdecarvalhiana mesmo. Deve ter dado muito trabalho costurar isso tudo, mas saiba que valeu à pena, e como valeu! Sugiro que você ponha neste post os links das outras matérias sobre o Campos que postou há tempos.

Americo Gentil disse...

Engraçadíssimo,Tuca. O trecho sobre a língua do Einstein e as outras línguas (idiomas) está excelente!

Inez Mattos disse...

Adorei! Bjinsss

Tuca Zamagna disse...

Valeu, Aline, Deco, Aloisio e Lena!

Que inveja, Natalia. Eu já tive essas páginas das crônicas do bruxo no Pasquim, mas minhas traças também gostam muito dele...

Bem-vindo, Papricantis! Vou aparecer no seu blog, sim.

Deu trabalho, Mendonça, mas não muito. Fui costurando o "papo" a partir de trechos que me vinham à cabeça.

Também adorei vê-la por aqui, Inez.

Essa história do Einstein, Américo, é o único trecho da entrevista que tem falas do Campos criadas por mim.

gorettiguerreira disse...

Maravilhoso e Imortal "Campos de Carvalho".
Tuca te sigo pq seu cantinho é mais q literário. É Um Blog Cultura e humor.
Bjs Goretti.

Izabel reis disse...

Adorei, Tuca. Você nos dar oportunidade de ler esta descontraída conversa, de compadres com este fera: Campos de Carvalho. Humor, inteligência. Sua marca registrada! Beijo, meu rei!