Capítulo I (Novamente)
. . . . . ..Razão tinha eu de suspeitar. Dissipou-se afinal a cortina de fumaça que encobria em parte o mistério deste hotel internacional em que me jogaram há mais de vinte anos. Não estamos num hotel, e sim num tenebroso campo de concentração, com tortura e tudo, a julgar pela que me infligiram ontem.
. . . . . . . Levaram-me, logo pela manhã, a uma câmara de gás onde havia uma cadeira elétrica (que logo constatei ser uma cama e não uma cadeira) e na qual sem dúvida pretendiam extorquir-me algum segredo de Estado, de que sou portador mas sinceramente ignoro qual seja. Fizeram-me deitar nessa pseudo-cama, inteiramente nu e amarrado --- com toda uma equipe de guardas ao lado, disfarçados de enfermeiros --- e puseram-me na cabeça uma espécie de capacete de aço (um pouco mais confortável, sem dúvida) do qual saía ostensivamente um par de fios elétricos.
. . . . . . . Não me deram chance nenhuma de defesa, pois nada me perguntaram nem responderam a nenhuma das minhas perguntas, como se o meu caso já fosse um caso perdido e que tribunal nenhum pudesse mais apreciar. Atado como estava, e amordaçado como um cão raivoso, vi perfeitamente quando ligaram uma chave elétrica que se achava bem junto à porta de entrada e senti a morte despedaçar-se de encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de pouso. Não direi que gritei, mesmo porque não me sobrou tempo nem lucidez para isso --- mas o que afirmo é que me transformei instantaneamente num cadáver e me senti mais frio do que um cubo de gelo jogado na gaveta de uma morgue. Vez por outra um pálido reflexo de consciência assomava à minha cabeça imobilizada, e eu divisava o teto a uma distância infinita e ouvia disparatadas as vozes de meus algozes, como num quadro surrealista ou numa cena de grand-guignol; num segundo, porém, tudo se apagava de novo e eu voltava à minha condição de cadáver congelado, ao choque brutal de uma bomba que me estourava os miolos.
. . . . . Quando voltei a mim, após a ressurreição da carne, eu me encontrava deitado e imóvel no meio da minha cama, sem outro pensamento que não fosse o de respirar profundamente e de escutar bater o meu próprio coração, tão espantosas me pareciam essas coisas tão simples, mas que são em verdade espantosas e dignas da maior consideração.
. . . . . Agora pergunto: que querem de mim, realmente, esses senhores e essas senhoras que até ontem eu tomava por gerentes e criados de um hotel de luxo, embora estranhando sempre o regime severo de vigilância a que estava, como todos os demais hóspedes, sujeito dia e noite, e até mesmo durante o sono? Que segredo importantíssimo é esse que querem arrancar-me à força, lançando mão inclusive das mais terríveis ameaças, como essa extrema da cadeira elétrica, sem julgamento prévio e sem conforto ao menos de um confessor?
. . . . . (...)
. . . . . Estaremos porventura numa nova Inquisição, ou será a mesma antiga que nunca deixou de existir e que só agora, pela primeira vez, se fez sentir em toda a sua plenitude sobre meu peito cansado e meu olhar triste, por motivos que desconheço e que aos outros parecerão óbvios? (Serei tão herege assim, eu que nem sequer nunca pensei em criar um deus à minha imagem e semelhança e em adorá-lo como se adora um senhor todo-poderoso, com subserviente hipocrisia?) Ou será que efetivamente sou um agente secreto de alguma potência estrangeira --- tão secreto que eu mesmo não sei --- e, dotado de dupla personalidade, esteja no momento posando de santo, até que eles me provem o contrário e me lancem com a minha verdade em pleno rosto? Tudo é possível neste mundo de infinitas surpresas, e o que me resta, como a eles, é apenas aguardar que os acontecimentos se sucedam por si mesmos e que eu venha a revelar um dia, por bem ou por mal, meu terrível segredo, ou --- o que será mais triste --- minha desesperada inocência.
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Terceiro dos seis romances escritos por Campos de Carvalho, A lua vem da Ásia foi lançado em 1956.
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Leia mais textos dele no marcador que leva seu nome. Leia também a “entrevista” que fiz com ele no 12º aniversário de sua não-morte, aqui.
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10 comentários:
hi! have a good day,
" Tudo é possível neste mundo de infinitas surpresas, e o que me resta, como a eles, é apenas aguardar que os acontecimentos se sucedam por si mesmos e que eu venha a revelar um dia, por bem ou por mal... "
Espero realmente que a verdade seja revelada e que os que foram julgados injustamente ao menos recebam desculpa...
um ótimo feriado...
Do cacete esse capítulo, funciona como um conto.
Olá!
Não conhecia o autor, mas gostei muito.
E gostei mais ainda da entrevista.
O humor com que ele responde deixou-me desconcertado.
Parabéns aos dois!
Sergio (Argentina).
Olá, bom dia!
Adorei o que li. Não conhecia o autor e vejo que perdi até agora a oportunidade de conhecer um excelente escritor.
A entrevista...:=) uma maravilha!
Obrigada pela visita!
Um beijo desde Portugal e votos de uma excelente sexta-feira.
Olá,
me visitaste no blog de selos, que pena.
Me encantaria que visses o meu blog principal.
O link é
http://serpai-acerca-de.blogspot.com/
Sergio.
Li A lua vem da Ásia há coisa de 15 ou 20 anos. É uma maravilha. A ordenação dos capítulos, um caos absoluto. Este "Primeiro Capítulo" surge lá pelo meio do livro, não é?
Campos de Carvalho é genial!
Ahh eu peguei esse blog no colo. Ele está crescendo rápido demais. Hazô no post. =]
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