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Abriu o seu amplo e rico guarda-roupa e não encontrou nada dentro: nem mesmo um par de suspensórios frouxos, uma gravata borboleta sem asas, um pé de meia viúvo. Em vez de roupas, nele só havia uma escada, brotando para baixo, quatro degraus já desabrochados. Chamou o seu escravo jardineiro e mandou que regasse a escada. No dia seguinte, fez a mesma coisa, e aí os degraus já eram sete. Quando passavam de trinta foi que reparou: quanto mais a escada crescia, mais profundo e escuro era o fosso que do degrau mais novo se via. Teve medo, por suspeitar de que estivesse descendo para um fundo que fundo não era porque fundo não tinha. Para certificar-se, lançou seu escravo jardineiro naquele abismo de trevas, e ouviu o grito quase interminável do homem se apagar nos cafundós do fosso, mas não o baque do corpo no chão, não a comprovação de que fundo havia. E tratou de voltar logo para cima, subindo centenas, milhares de degraus, muito, muito mais do que havia descido. Chegou a desconfiar de que a volta também não teria fim. Mas tinha: ouviu perfeitamente o baque do seu próprio corpo nos degraus, ao ser atropelado e soterrado por uma avalanche de calças, camisas, paletós, agasalhos, cuecas, suspensórios novos e meias casadas, sobrevoados por um enxame de escravos de gravata borboleta.
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Homenagem do.desinformação seletiva.aos trabalhadores de todo dia.
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6 comentários:
Bela história, Tuca. Tem o mesmo clima aflitivo, sufocante mas arejado pelo humor de alguns de seus contos de réis. Um barato a ilustração.
Grande presente aos trabalhadores. Obrigado pela parte que me cabe nesse "patrãocídio"!
Parábola perfeita. O desfecho é primoroso.
Vixi que conto ENORME! kkkkk Mas tão bom quanto os seus melhores micro-contos, Tuca. E o desenho do Helio está perfeito, super afinado com o texto.
Excelente, Tuca. E de uma elegância especial o design, com a bela ilustração do Hélio Jesuino bem integrada à massa de texto.
Meio angustiante e perverso quase todo o conto, mas o final é apoteótico, um orgasmo!
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