sábado, 6 de fevereiro de 2010

Sol noturno

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O não-nascido leva ao circo
as gargalhadas do falecido . . .
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Em sua Autobiografia de um que nunca nasceu, Fiophélio Nonato passa a conviver com súbitas aparições da gargalhada de seu padrinho Eros Ivo depois que este morre, em circunstâncias estranhíssimas. No trecho do livro que apresentamos a seguir, a gargalhada aparece em lugar bem apropriado: no circo, umas das paixões de Nonato e seu “Dindo”.

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sexta-feira, 13 de abril de 2012


O circo lotado, fim do derradeiro número. A gargalhada monumental e irresistível do meu finado padrinho Eros Ivo eclodiu como rédeas conduzindo para o alto os risos e aplausos dos expectadores que se renderam, todos, às fantásticas cambalhotas mortais do palhaço Fefênix, sem perceberem que o artista, estirado imóvel no chão, prolongava a imobilidade não para dramatizar e realçar o efeito cômico da sua performance, mas porque lograra realizar a cambalhota mortal perfeita: no ar, enquanto piruetava a esmo, fisgara o mal súbito que o matou. E agora todos gargalhavam cada vez mais alto, sob a batuta sonora do Dindo, e logo se dobrariam de tanto rir, caindo uns sobre os outros, alguns já molhando as calças, outros até babando a alma alheia.


O palhaço Fefênix então se levantou da morte e, meio sem graça como qualquer morto que é aplaudido, tirou o chapéu e curvou-se agradecendo ao respeitável público que a essa altura uivava junto comigo de tanto rir. Presa do riso feérico, o falecido Fefênix tirou a careca postiça e de novo curvou-se agradecendo ao respeitável público que chorava de rir a cântaros. Afogado de emoção, o defunto Fefênix tirou a sub-peruca de magistrado que encobria sua calvície real, para curvar-se agradecendo ao respeitável público que ria a bandeiras brasileiras despregadas. Patrioticamente, o de botas batidas Fefênix tirou sua carnal careca apátrida e mais uma vez curvou-se agradecendo ao respeitável público que ria mais que filhos de cego perdido em tiroteio de bombinhas juninas.


Desnorteado, o escalpelado corpo sem vida do palhaço Fefênix tirou o tampo do crânio e quase caiu para frente ao curvar-se agradecendo ao respeitável público que gargalhava a cambalhotas em cascata e em chafariz – de praça ou de cetáceo. A esguichar leques e salamaleques, o não-autopsiado Fefênix tirou o cérebro e, sem pensar, curvou-se agradecendo ao respeitável público que já botava pelo riso escancarado o coração batendo palmas, os bofes assobiando e, pelos zíperes estourados de tanto rir, o pênis badalando sinos ou o clitóris chacoalhando guizos, acompanhados de pedidos de bis, mais, isso aí, vamos lá, com força, ui, vem, espera, ai, aperta, humm, ainda não, nossa, não pára, uau, tudo, ai ai ai, assim, mais rápido, u-uuu, tô quase...


Libidinosamente, a desmiolada peça anatômica Fefênix tirou do oco da cabeça coelhos arrulhando pombas, pombas chocando ovos de Páscoa, cobras quadradas e lagartos redondos, o monstro do Lago Ness pescado por um Dragão da Independência no Piscinão de Ramos, a vedete Rose Rondelli aos 18 anos sussurrando nudez sob uma burca negra semitransparente... e curvou-se, curvou-se várias vezes agradecendo ao respeitável público que guerreava em paz e amor a gargalhadas disparadas não só da boca como dos olhos, das narinas, das orelhas, dos mamilos, do umbigo, do coração, do intestino, da mente, da alma, do espírito, do karma, da aura, dos chakras, dos meridianos, das nadis, do prana, do kundaline, do ego, do superego, do id, da libido, das pulsões nomeadas e das pulsões inomináveis, dos apitos eróticos do seu Celestino de cada um um-mesmo e de cada casal, triângulo, pentágono, trenzinho de tchutchucas e tchutchucos cachorros e cachorras preparadas e preparados – nas mais variadas posições judaico-cristãos, nas do kama sutra, nas tântricas e em muitas outras bem mais sofisticadas, mágicos frutos do improviso.


Envolvido pela fumaça do inconsciente coletivo em chamas, o presunto defumado Fefênix desabotoou, num truque de prestidigitação sem o uso das mãos, a braguilha da alma, e botou para fora seu corpo em rigidez cadavérica transubstanciando-se num infinito picadeiro multicolorido sobrevoado por almas de palhaços: as do Carequinha, do Fred, do Zumbi e do Meio-Quilo; as do Arrelia, do Chincharrão, do Piolim, do Torresmo, do Picolino e do Massaroca; as do Serrano, do Pirulito, do Polidoro, do Eduardo Neves, do Alcebíades, do Caetano Namba, do Dudu Diamante Negro e do Benjamin de Oliveira – com sua peruca de cabelos lisos e o alvaiade no rosto que poupavam as platéias escravagistas da visão hedionda de um preto forro fazendo, nos picadeiros do segundo império, graça das boas como se branco fosse...


Sem mais corpo nem tempo nem espaço para curvar-se ante o respeitável público que transformara-se num mar gargalhante de orgasmos cujas ondas lambiam o rabo incandescente de sua essência em forma de cometa, o agora palhastro Fefênix agradeceu a abanar sorridente o referido traseiro luminoso. E enquanto as almas-estrelas dos seus companheiros iam estampando constelações pela cobertura celeste noturna do circo, o indelével espírito palhaço de Fefênix traçou, esvoaçando entre nuvens de gargalhadas formadas por evaporação do respeitável mar, mirabolantes cambalhotas imortais, antes de esborrachar-se estirado no céu circense e prolongar para sempre a imobilidade que dramatiza e realça o efeito cômico de sua performance como sol noturno – aquele lá, com La Rondelli, rósea risonha lua nua, na lapela.

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6 comentários:

Lupe disse...

Lindíssimo, Tuca!!!
Desses palhaços todos que o Phiofélio homenageia só conheci o Carequinha... pessoalmente! Mas já ouvi falarem muito do Fred, Zumbi, Meio-Quilo e do grande Arrelia. Você esqueceu de incluir o Pimentinha que fazia dupla com o Arrelia.
Bjs

Unknown disse...

Caraca, Tutuca, que espetáculo esse respeitável texto! Colorido, rico, orgíaco, orgástico, antropofágico, tropicalista e o escambau. Meu queixo está no picadeiro.

Hans Freeman disse...

Adorei isso!!!!!!!!
É um artigo extraído de um livro???
Quero quero quero!

Tuca Zamagna disse...

Esqueci não, Lupe. Eu adorava o Pimentinha também. Só não o incluí porque talvez ele - Walter Seyssel, sobrinho do Arrelia - ainda esteja vivo. Se for longevo como o tio, que morreu em 2005, aos 99 anos, com toda certeza ainda está por aí.

Valeu, Nino! Sua aprovação é valiosíssima. O Fiophélio, besta como ele só, decerto vai dar de ombros quando souber do seu comentário, mas fervilhando de orgulho por dentro.

Grande Hans! Se eu conseguir desvendar toda a hieroglifagem do Fiophélio, mando o livro para você antes mesmo de tentar editá-lo.

Maria Regina Lemos disse...

Genial, Tuca! Engraçado e emocionante!!!

Celinha H disse...

Simplesmente maravilhoso!