sábado, 28 de setembro de 2013

Poema inédito de Lispector?

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Eu, uma brasileira
Clarice Lispector   .  .  .  .  .  .  .  . . .  . .  .  .  .  . 
Uma russa de 21 anos de idade
E que está no Brasil há 21 anos
Menos alguns meses.
Que não conhece
Uma só palavra de russo
Mas que pensa, fala, escreve
E age em português,
Fazendo disso sua profissão
E nisso pousando todos
Os projetos do seu futuro,
Próximo ou longínquo.
Que não tem pai nem mãe –
O primeiro, assim como as irmãs
Da signatária, brasileiro naturalizado..
E que por isso não se sente
De modo algum presa ao país
De onde veio,
Nem sequer por ouvir relatos sobre ele.
Que deseja casar-se com brasileiro
E ter filhos brasileiros.
Que, se fosse obrigada a voltar
À Rússia, lá se sentiria
Irremediavelmente estrangeira,
Sem amigos, sem profissão,
Sem esperança.

(Trecho, “poemado”, de carta da escritora ao Presidente Getúlio Vargas, datada de 3 de janeiro de 1942)
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Fac simile da carta de Clarice Lispector

Importante: Embora existam dezenas de “poemas de Clarice Lispector” circulando pela internet, a escritora jamais publicou qualquer texto em versos. Tais poemas são, como este aqui, textos em prosa quebrados em versos por gente irresponsável como eu... ou, pior, poemas de outros autores a ela atribuídos.

sábado, 21 de setembro de 2013

Migalhas, ciscos e pó

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Antônio Rebouças Falcão

   .. ... .    Nessa madrugada, a solidão dos galos cujos cantos não receberam respostas.
          O descaminho da formiguinha que se perdeu da linha viva de suas parceiras.
          Os destinos da lima e da banana que, recusadas, vão apodrecer únicas nos cantos das gôndolas.
          O endereço do dente de leite que se perdeu nos ínfimos recônditos do chão.
          A carta de amor nunca enviada que a mocinha esqueceu no ponto de ônibus.
          O lençol branco com monogramas exclusivos, no quarto reservado pelos nubentes que despencaram do céu na noite de ontem.
          O falso documento de identidade de um tal Josias dos Santos, esquecido no banco da praça.
          A última palavra escrita com aquela caneta, atirada ao piso da avenida central.
          O passageiro que desapareceu no aeroporto, sem ter nunca chegado ou partido.
          Um quarto de dicionário que retinha a atenção do mendigo à sombra do oiti.
          O telefonema que, nesse instante, me recusei a atender.

Blogue do autor:  Dilema paulistano  



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Pela rua dourada



Anga Mazle   .    .    .  

Venho voltando da casa de minha madrinha que acaba de falecer.
Voltando da casa de minha madrinha pela rua dourada de casas antigas,
trajeto que sempre  fiz esses anos todos, mesmo depois que, aos 12 anos,
deixei de morar com ela.
Da casa de minha madrinha só me resta um tesouro: os olhos daquele garoto
que morava numa das casas douradas desta rua. De minha madrinha, agora
só me lembro da doçura com que me disse “é um bom menino, estudioso,
de família honesta e trabalhadora, mas ainda é muito cedo para vocês, não é
não, querida?” Cedo era, mas nem por isso apagou-se a lembrança do coração
disparando todas as incontáveis vezes em que, indo ou vindo por esta rua,
meus olhos tropeçaram nos dele, fixos em mim, iluminando-lhe o rosto
emoldurado pela  janela de sua casa dourada. É tarde para lembrar, mas não
esqueço nem a tola cumplicidade da nossa timidez, seus olhos a escorrerem
juntos com os meus até o chão da rua, bem ali adiante, onde ainda está a casa
dourada em que ele morava. Ao passar em frente a ela, sou fisgada pelos 
mesmos olhos que me seguiram esses anos todos. O meu coração dispara 
enquanto, pela primeira vez, nossos olhos se mantêm interligados, sem 
escorrerem até o chão da rua. Mas os dele não me reconhecem, e os meus 
também não reconhecem o dono deles. Pouco importa. Venho voltando da 
casa de minha madrinha pela rua dourada de casas antigas, tão dourada 
como no tempo em que a vida morava aqui.
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          Fonte da imagem: daijoji.blogspot.com

domingo, 1 de setembro de 2013

Beijo

Garota de Ipanema
Saiu nua do mar, cruzou a faixa de areia, a calçada e a ciclovia da Vieira Souto. 
Sem aplausos nem vaias, só uma buzinada, já na pista, antes do baque fatal.

O colecionador
Coberto de borboletas, o cactus não tem flores para lhes dar. Só espinhos.

Boa noite

Antes de se deitar, ele põe as dentaduras no copo d’água, a peruca no cabideiro,
o pé mecânico sob a cama e o resto de si janela afora.

Cheia
Acordou com um palavrão vindo do céu. Era a lua, cheia.

Saudade

No velório do marido, a viúva deu de acariciar-lhe o pênis. “Pare com isso,
mãe, ele está morto!” E a velha, nostálgica: “E eu não sei? Faz mais de 25 anos.”

Muito além do horizonte
Diante dela, o mar se estende além, muito além do horizonte, até completar
a volta ao mundo e armar a onda que quebra e a atinge pelas costas, tragando-a. 

João de barro

Desenganado, o passarinho ergueu, em barro, a sua última morada.

O time
A enfermeira saiu à sala de espera com o recém nascido no colo: “Quem é
o pai do bebê de dona Isolina?” Junto com o marido, gritaram “eu” o cunhado,
o encanador e oito vizinhos.

O duelo

Encostados, de costas um para o outro, pistolas empunhadas, os duelistas 
aguardam o sinal do juiz para que caminhem dez passos, virem-se e disparem.  
Aguardam há meses, anos, séculos...

Morte após a morte
Leitor assíduo de obituários, certo dia leu, com profundo deleite, o seu próprio.

Beijo

Nossos olhos fechados, nossos lábios e línguas nos dizendo: 
ó céus, como brilham os nossos olhos!

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