domingo, 13 de novembro de 2011

Amor dos Anjos

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. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Quero-te como me querem as dores –  
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Sinhás de todo canto do meu ser
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Físico e anímico –, a liquefazer
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . A tosca pedra em que erigi tuas cores

. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Colhidas quando a esperar-te me pus.
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Viso – e a cada dia mais ­– a escolha insana
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . De quem da fé nas quimeras se ufana,
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Infenso ao medo do abismo sem luz.

. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Amo a cordilheira dos véus de nuvem
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Que anuncia teu vôo de garça (ou de abutre)
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Enquanto a vida e a não-vida retumbem.

. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . De ti, exijo tão só a sofreguidão
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Com que o amor maior da natureza nutre
. . . . . . . . . . . . . .  . . . .  . . .. . . . . . . . . . . . . .  . Até os vermes que me aguardam no chão.

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Leopoldina (minha cidade natal), julho de 1990 . [ após visita
ao túmulo de Augusto dos Anjos]
– Escrever textos dolentes não me pesa. Pelo contrário:
fazem-me leve e alado. Mas este, o tempo o chumbou. Pouco tempo:
um mês depois, minha madrinha, que na ocasião eu fora visitar, se foi.
E, em setembro e dezembro do mesmo ano,
foram-se também meus dois melhores amigos. (Perdoem-me
pelo comentário, que , suponho, pode ceifar eventuais asas do poema.)



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sábado, 5 de novembro de 2011

O safári íntimo



O SAFÁRI ÍNTIMO – regulamento e origem antes que a girafa me morda, antes que o abutre me pise e antes que a tartaruga me alcance.

Carla Diacov

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“Estou vivendo de hora em hora, com muito temor. Um dia me safarei - aos poucos me safarei, começarei um safári.”
 Ana Cristina César
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POR TRATAR-SE DE UMA PROFUNDA BUSCA DO SER POR SIGO MESMO, SEGUE, EM PRIMEIRO PLANO(?), AS REGRAS EM SE COISAR NO SAFÁRI ÍNTIMO. NUNCA. SEMPRE.

1
O forte do safári íntimo não é o forte. Nunca.

2
No safári íntimo, a idéia que temos de nós não exerce função. Nunca.

3
Há chances de coisas absolutas tornarem-se desenxabidas ou irresolutas no safári íntimo. Sempre.

4
No safári íntimo a aproximação ou até a amizade com a onça deve ser evitada. Sempre.

5
Quem comove, equilibra e desequilibra os ares do próprio safári íntimo. Sempre.

6
Só no safári íntimo o cuspe contém sérios pensamentos. Sempre.

7
No safári íntimo as leis da física exercem efeito nenhum sobre as idéias românticas. Terrível, mas sempre.

8
No safári íntimo o desejo não é elástico. Nunca. Terrível, mas higiênico.

9
Só no safári íntimo a chuva é mais usada e mais fina e mais quentinha e molha mais. Sempre.

10
No safári íntimo as manias que a gente tem são como espetos espinhados e venenosos. Sempre e nunca, nessa ordem.

11
Só no safári íntimo a função de alguns órgãos do corpo humano é provisória. Sempre.

12
No safári íntimo nada supera a carcaça. Nunca. Em nada.

13
No safári íntimo a areia movediça despe e gela. Sempre. )Mas existem muitas folhonas por lá.(

14
No safári íntimo não se usa espelhos do lado direito por se considerar alto o risco em se ver. Nunca. )As folhonas não refletem. Nunca. Graças a Deus.(

15
Safári íntimo sem carcaça não vale. Nunca. )A carcaça não é coisa que se leva ao safári íntimo. Carcaça é coisa que deve ser descoberta e, por favor, cada um que descubra a sua.(

16
Iniciar-se no safári íntimo pode ser muito vantajoso visto que o prêmio )Só para os que conseguem entrar e sair de lá/ não é o meu caso.( É a própria cabeça a ornamentar a parede mais concretizada do ego. )Deve haver alguma. Parede. E cabeça. Conforme for o caso. Ou esqueça. O prêmio e a cabeça.(
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)A carcaça existe desde muito antes dos primórdios e surgiu junto com os ventos e ovos) é o ovo uma espécie reinadelascascas de carcaça (do safári íntimo. )Desde muito antes da carcaça, venta.( Na carcaça não há órgãos, só danos. A única curiosidade do homem em relação à carcaça é de ordem desconhecida o que faz com que a carcaça fique onde está, por isso, investir na ciência da carcaça seria um projeto viável, técnica e economicamente, para uma nação e para uma noção, não fosse a humanidade besta como é.
)Uma vez, num supersafári íntimo, uma carcaça foi encontrada. Uma outra vez, nesse mesmo safári, a mesma carcaça foi perdida. Mas na vez em que a carcaça foi encontrada, ela foi encontrada por uma menina enterradíssima. A frase anterior seria uma contra arbitragem, não fosse pelo sentido supralegítimo, ou seja, a carcaça em questão pertencia aos restos mortais da própria menina, também em questão, ou seja, a menina era uma menina-múmia datada de desde muito antes da carcaça, portanto, dados mais sólidos da carcaça teriam sido utilizados como parâmetros de avaliação para as informações geradas pelo sistema de identificação do safári íntimo da menina-múmia, evitando assim, a perda da carcaça, não fosse a perda da carcaça. Daí esse meu safári íntimo.((
Postado originalmente em  OVOS, aqui.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Deus e outros contos de réis

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Triângulo isósceles
Carregou a esposa até a casa da outra. “Sua mulher está morta”, disse a amante. “Sim”, assentiu, junto com um tiro na testa dela e, logo, outro na própria fronte.
 
À flor da pele
Podia vestir-se do pés à cabeça que, ao sair à rua, todos a viam completamente nua. Preferia correr pelas matas, em dias assim – de alma à flor da pele.

A maneira
Sabia o que queria. Só não soubera, pensou, pedi-lo da maneira correta. Então mentiu, e deu tudo certo.

 Demanda
“Mais rápido, muito mais rápido” – decidiu. – “Até conseguir escrever na mesma velocidade com que chegam as idéias que jogo fora.”
 
Janela
Chegou à janela: ninguém na rua. Fechou a janela: a multidão dentro de si. Abriu-se, e uma cascata de gente inundou a rua, a cidade, o mundo.

O baque
 Vê a bola rolando pela rua, vê o menino correndo atrás da bola, vê o carro passando. Ouve a freada, fecha os olhos... sente o baque: já não é mais o menino correndo atrás da bola.
 
Altitude
'Elogio não levanta o moral, sucesso não sobe à cabeça, leitura não eleva ninguém: você é que inventa a altura que supõe merecer' – supôs ter lido.

O homem dos sonhos
Cobria-se de sedas, jóias, cosméticos e perfumes, à espera do homem dos seus sonhos. Quando ele enfim surgiu, não viu nada: olhara somente para dentro dela.

Metades
 Ia morder a maçã, mas lembrou-se da mulher que se foi. Meteu-lhe, então, a faca. Bem no meio. Metades tão perfeitas que não pôde comê-las. Uma, epitáfio em versos; a outra, natureza morta.
 
Deus
Um homem maltrapilho, imundo, abatido, pés descalços, vindo em sua direção. Parou tão perto que ela pôde sentir o hálito de fumo, álcool e éter. Tirou algumas moedas da bolsa mas não chegou a oferecê-las, porque ele a afogou num beijo divino. 
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