sábado, 30 de outubro de 2010

Mulher em drágeas

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Um desejo a mais

Deseja tanto quanto desejava antes. Não, deseja mais. Deseja que o mar de possibilidades que evaporou no tempo evapore também no desejar.

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Malabarismo

A necessidade de entendê-la era um veneno. Troquei a consciência pela fé nos seus desejos. Deu certo, mas só eu sei quanto isso me custava.

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A cerimônia

Não se atrasara a arrumar-se, mas quando chegou à igreja o noivo já não a esperava. Nem os convidados, que foram todos para o velório.

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.Caramelada

Chegou correndo, brilhante de suor. O olhar de mel derramava-se: “Vamos?” E o hálito de caramelo enredou-me para sempre.

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Traição

Nunca traiu o marido de verdade. Traía, isto sim, o terrível medo de atravessar as noites sozinha.

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O sonho dos homens

As três eram meigas, discretas, bem-humoradas. Dariam ótimas esposas, ele sonhava. Mas o pai delas, não: queria porque queria três genros.

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Fogo de artifício

Nenhuma dor ou concessão era maior que o prazer de dominar. Enlouquecia os homens, enquanto ia construindo sua solidão fria e sem cor.

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O homem dos sonhos

Cobria-se de sedas, jóias, cosméticos e perfumes, à espera do homem dos seus sonhos. Quando ele enfim surgiu, não viu nada: olhava somente para dentro dela.

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Imagens:

Um desejo a mais – Juan Carlos Eberhardt jceberhardt.blogspot.com

Malabarismo – thehottestshit.blogspot.com

A cerimônia – Sheyla Castellanos Romero pintoracubana.blogspot.com

Caramelada widelec.org

Traição Spicy Mistery (agosto – 1935)

O sonho dos homens mariacaleis.blogspot.com

Fogo de artifício – Christian Fernandez Glazer dealma-da.blogspot.com

O homem dos sonhos Calendário Eizo apollonnews.blogspot.com

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

35 anos do "suicídio" de Herzog

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Perícia para Vladimir Herzog*

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 25.10.1975. –– .25.10.2010 .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ricardo G. Ramos .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Resta hoje o inquérito

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Porque o corpo sem voz

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Não serve mais

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Nem corre nem nada

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Porque no corpo sem vida

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Não batem mais

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Resta

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A dificuldade técnica

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Do morto

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Subir no colchão

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Do morto

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Na grade metálica

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Da laçada de nó corrediço

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .De uma cinta de tecido verde

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Eis a dificuldade única

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Do morto suicidar-se

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Do morto assinar-se

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Na TV colorida do sábado


. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . *do livro O Santo Sumário




Suicidado pela ditadura

O jornalista Vladimir Herzog, 38 anos, casado, pai de dois filhos e diretor de jornalismo da TV Cultura, foi encontrado morto, supostamente enforcado, nas dependências do 2ª Exército, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975, durante o governo do ditador Ernesto Geisel. No dia seguinte à morte, o comando do Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão de repressão do exército brasileiro, divulgou nota oficial informando que Herzog havia cometido suicídio na cela em que estava preso.

A versão oficial foi refutada pelos movimentos sociais de resistência à ditadura militar. Uma semana após a morte do jornalista, cerca de oito mil brasileiros participaram de uma missa ecumênica organizada por D. Paulo Evaristo Arns, pelo reverendo James Wright e pelo rabino Henri Sobel.

Três anos depois, no dia 27 de outubro de 1978, o processo movido pela família de Herzog revelou a verdade sobre sua morte. A União foi responsabilizada pelas torturas e pelo assassinato do jornalista. Foi o primeiro processo vitorioso movido por familiares de uma vítima do regime militar.

Fonte: PortalTerra

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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Faça Você Mesmo - II

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. . . . . . . . . . . . . . Prof. Edson Rocha Braga

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Dito chistoso

Pegue um dito comum, condensado e de peso reduzido. Ou seja: pegue leve.

Examine o dito cujo cuidadosamente por todos os lados, de modo a assegurar-se de que esteja completamente destituído de sujeiras ou duplo sentido.

Acrescente ao propriamente dito um adjetivo sonoro, porém incolor, inodoro e de transparência leitosa. Apare bem as pontas, com uma lixa de unha.

E voalá! Está pronto o seu Dito Chistoso. Moderno, limpo, inédito e personalíssimo.

Usado apropriadamente, irá render-lhe saúde, prosperidade, poder, fama e total satisfação sexual, embora sempre com o risco de um ou outro incômodo cachação no pé-do-ouvido. Enfim, nada é perfeito.

Importante: para nunca ter que dar o seu dito por não dito, use-o somente após lavar a boca com sabão de coco e bombril. E dedique-o à sua querida mamã, com um beijo no coração.

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Esta postagem é patrocinada pelo CONCUCOPERBRARB Conselho dos Cupinchas de Copo do Prof. Edson Rocha Braga no Rio-Brasília. O bar, o conselho, o professor e os copos (sempre cheios de cerveja geladíssima) ficam na Av. Nossa Senhora de Copacabana, em frente à Rua Inhagá, em Copacabana.

(Este patrocínio garante aos quatro diretores do desinformação seletiva a bagatela anual de 2 (duas) cervejas, per capita, no pendura!)

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Ilustração principal: extraída (e photoshopeada) do Blog do Dito
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domingo, 17 de outubro de 2010

Cinco contos de réis

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Coro

Cochilava na rede, a ouvir os adultos tagarelarem na sala. As vozes viraram música, um coro que embalava sonhos de paz e eternidade.


Pseudo-vegetarianismo

A pouca habilidade com facas e raladores sempre comprometeu a sua culinária vegetariana.


Limpeza

Catou meias, cuecas, tênis e outras peças espalhadas pela casa. Ensacou tudo e jogou no lixo, enquanto se indagava, sem dor, por que não vira pelo chão qualquer vestígio de afeto.

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Ego

“O universo é infinito” ––odisse, apontando para si mesmo. “Maior que ele” –– ocorria as mãos pelo ar ––o“só eu.”


Multiplicação

Seu amor era pelos meus seios. E se multiplicou até a exaustão, sem que ele nunca se apercebesse que, logo ali atrás, alguma coisa em mim pulsava.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Seu Juca Sem Fio, um andarilho - II

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Anga Mazle . .

No final de março, Tuca, Elza e eu entrevistamos Seu Juca Sem Fio, o andarilho mais culto e misterioso do Rio de Janeiro. Postamos a parte do material gravada no meu MP3, que acabaria pifando durante a entrevista. Ficamos devendo o restante, registrado num velho gravador de rolo emprestado pelo dono do bar em que nos reunimos com Seu Juca, em Vila Valqueire, na Zona Oeste do Rio.

Eu pelejava desde então com essa gravação, na qual as falas de nosso entrevistado estão incompreensíveis, sua voz mais grave e rouca do que de fato é e, estranhamente, fanha. Só neste fim de semana foi possível fazer a transcrição da fita, graças à inestimável colaboração de uma fonoaudióloga especializada em fanhos. Em nome de toda a equipe do desinformação seletiva, muitíssimo obrigada, Dra. Ônhia Inhanhães!

Tuca - O que é a liberdade para o senhor, Seu Juca?

Seu Juca - Uma coisa miúda e informe que incomoda a maioria das pessoas. Bem mais que um cisco no olho... Mas, se fosse preciso, eu daria os meus dois olhos por ela. Mesmo sabendo que essa fulustreca é arisca toda vida, mais escorregadia que lesma no cio... Eu acho que todos deviam se dedicar à sua própria liberdade de corpo e roupa!

Elza – E alma, o senhor quis dizer...

Seu Juca - Eu quis dizer roupa mesmo, pois andar pelado por aí é uma liberdade que dá cadeia. De mais a mais, não creio em alma. Acho até que certa feita eu apalpei uma no cinema. Sei lá, não dou certeza. Estava escuro, e na época eu pouco sabia sobre a anatomia feminina. (Ri, meio envergonhado) Hoje, felizmente, sei menos ainda.

Tuca – Felizmente? O senhor já não se interessa por mulher?

Seu Juca – Que isso! É a única coisa que me interessa. O tempo todo, até quando durmo. Por isso, quanto mais eu conseguir não saber sobre o corpo da mulher, melhor. É território sagrado, morada do mistério mais alto, da irrealidade mais profunda e verdadeira. Não cabe sondá-lo, profaná-lo com as asperezas dos questionamentos e conceitos. É dever do homem tratar essa sabedoria em carne e osso com a ignorância ampla e sedosa dos sonhos nunca dantes sonhados. (Elza e eu não contivemos um suspiro.) Infeliz daquele que percorre com os olhos a vastidão da nudez de uma mulher!

Anga – O senhor não olha para o corpo da mulher com quem transa?

Seu Juca – Se ela estiver nua, jamais! Para me despertar um desejo forte, devidamente incontrolável, a mulher tem de estar vestida de acordo. Um corpo feminino coberto de rendas e cetins fica mais nu, deslumbrantemente nu. A lingerie é o ponto de exclamação da nudez!... E quando esta finalmente nos é oferecida, ou é por nós conquistada, devemos fechar os olhos. Não por pudor, mas para ficarmos cegos. Cegos, compreendem?... Uma mulher nua pode ser vista dos pés à cabeça, de trás para frente, de fora para dentro, de dentro pra fora... mas só em braile!

Tuca – O senhor teve muitas mulheres, certo?

Seu Juca – Nenhuma, não, seu moço. Mas deixei que muitas me tivessem. Muitas. E continuo deixando. Sempre com o mesmo porém: quando elas me dizem... sou sua!.... eu pico a mula.

Anga – Medo, seu Juca?

Seu Juca – Muito. Não se deve ter uma mulher. Porque, assim, sentindo-se pertencida, ela se torna um tormento para si mesma, afunda num desconsolo atroz. É levada a descobrir aquela porção de nada que todos trazem dentro de si e geralmente não sabem, ou fingem não saber. A mulher deixa de ser quem ela era, não tem mais serventia nenhuma, nem para mim nem para si mesma. Como é forte, consegue sobreviver nesse horror anos a fio, a vida toda até. A não ser que você a liberte, livrando-a de você. Ou que ela resolva lhe trair, santo remédio para as asas que ela própria quebrou por você.

Tuca – E o senhor suporta bem isso, a traição?

Seu Juca – Não sei. Como eu disse, nunca fui dono de mulher nenhuma. Acho, entretanto, que deve ser mais fácil suportar o peso de uma galhada monumental do que ver o tempo todo a imagem lúgubre de um rosto feminino apagado, que não consegue mais erguer as comissuras labiais, mantendo a linha da boca emborcada até quando ri, se é que ainda ri. É terrível. Conhecem a Bette Davis?... A Jeanne Moreau?

Tuca – Duas grandes atrizes que adquiriram com o tempo esse desenho labial “emborcado” de que o senhor fala. Gosta de cinema?

Seu Juca – Gostava, gostava bem. Uma pena não haver mais nenhum por aí faz tempo.

Elza – Ainda há muitos, sim. Nos shoppings.

Seu Juca – Os cinemas estão nos shoppings? Que tragédia!... Ou os filmes andam uma bosta só ou, pior, o consumismo se sofisticou.

Elza – O senhor não gosta de shopping?

Seu Juca – Não. E desde o início, desde que os americanos começaram a exportar pro mundo todo essa geringonça monstruosa. Nunca vi um shopping por dentro. Não entro naquilo. De jeito nenhum. Nem morto, amarrado e amordaçado. Em supermercado, também não

Elza – Por quê?

Seu Juca – Ora, sei que não se pode chegar à perfeição, mas pra mim a feira livre era e é a perfeição possível nesse tipo de comércio. Tentaram ir além, deu nisso. Supermercado, shopping... a feira encarcerada! Ainda bem que o povo, para superar as dificuldades impostas pelos doutores da economia e do marquetingue (sic), criou o shopping a céu aberto, as aglomerações de camelôs que estão pintalgando de vida as ruas das grandes cidades.

Anga – Qual o segredo dessas iniciativas populares? Existiria um saber superior, instintivo, maior que o saber da ciência?

Seu Juca A ciência não sabe nada. Tudo que ela pode fazer é colher e distribuir os frutos desse saber instintivo. Mas não, ela não se contenta com isso. Porque é constituída por um grupo, uma espécie de conselho... mau conselho!... que se reúne, amealha todo o saber instintivo recém-surgido e, entre um chazinho com bolacha e outro, fica debatendo o que é melhor, mais adequado para ser aplicado. Quando chegam... quando chegam!... a alguma conclusão, grande parte daqueles saberes já estão se deteriorando! E são esses produtos putrefatos que eles oferecem para consumo da sociedade.

Elza – Mas existem bons cientistas, pessoas criativas e bem intencionadas.

Seu Juca – Esses não são cientistas.

Anga – São o quê?

Seu Juca – Poetas, moça. E não há lugar para eles no “conselho”. Não que o conselho não os queira, eles é que não querem o conselho. Sabem que o conselho é a morte, enquanto a eles só interessa a vida, mesmo quando falam da morte. O poeta é um indivíduo. Ainda existem indivíduos, sabiam? São poucos, mas existem.

Anga – Só os poetas são indivíduos?

Seu Juca – Só.

Tuca – E os andarilhos, eles não são indivíduos?

Seu Juca – Eu sou. E os outros, provavelmente, também são. Sei lá. Não posso falar por eles, ser o porta-voz de uma categoria cuja virtude maior é justamente não se constituir como tal, é ser um todo feito de cada um por si e estamos conversados. Nada a ver com individualismo, hem! O individualista só existe no seio do grupo. Se não integramos grupo algum, podemos ser indivíduos. Não queremos impor nada à sociedade ou mesmo a outro indivíduo. Nossa filosofia se resume a um conceito que dispensa desdobramentos analíticos.

Elza – Qual é?

Seu Juca – Eu não encho o teu saco, tu não enches o meu.

Tuca – Se a seu ver só os poetas são indivíduos e o senhor diz que é um indivíduo, logo o andarilho seria também um poeta...

Seu Juca – Um poeta. Sim, todo andarilho é um poeta. Mas nem todo poeta é um andarilho. Assumidamente, quero dizer. Porque na essência eles o são, embora talvez sem se dar conta de que estão tão próximos desse estágio superior de vida. Nós, mais do que esses que teimam em ser poetas não-andarilhos, respeitamos a alergia purulenta que nos causa a convivência em família, turmas, associações, religiões, partidos políticos, reuniões de condomínio, etc.

Elza – O senhor acredita que a vida seja possível sem essas corporações?

Seu Juca – A vida não depende das corporações, elas é que dependem da vida, parasitando-a, sugando sua poderosa energia. Veja o caso dessa turma que luta pela preservação do meio ambiente. Que pretensão! Se julgam capazes de deter o rumo inexorável da história. A arrogância das arrogâncias! São tão estúpidos quanto os donos do poder, os que trabalham pelo fim da humanidade a curto prazo. Mas esses, pelo menos, merecem a minha admiração, por estarem agilizando, ainda que inconscientemente, uma vida melhor para o planeta, que enfim poderá se ver livre do Homem, esse lastimável produto da evolução patológica da ameba!

Tuca – E o senhor não vê nenhuma saída?

Seu Juca – Saída... saída....

(Seu Juca olha nos olhos do Tuca, mas focando seu olhar muito além do Tuca. De repente, desvia os olhos para fora do bar, como se tivesse avistado qualquer coisa lá no fim da rua. Enquanto nos viramos para olhar na mesma direção, ele se levanta. E sai, descendo a rua até a última esquina, onde dobra e desaparece. Demos por encerrada a entrevista. Tinha outra saída?)

Leia a primeira parte da entrevista, aqui.

Ilustração: do blog do artista plástico Hélio Jesuíno, aqui.

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