¨Em plena metrópole, um céu estreladoque só se vê em áreas pouco povoadas¨
¨Não me pegam outra vez. Não me pegam, mesmo. Abri o olho, não atravesso mais a rua quando o sinal de pedestres está aberto. Que é nessa hora que eles pegam os incautos. Faz tempo, só vou na boa, assim como agora, serpenteando por entre os carros, saudado por essa algazarra dos que afundam a mão na buzina para ordenar, "mandrake aí, que eu te pego de jeito, filho da puta".
Um carro afro com vidros afro-descendentes, desses sem ninguém dentro, vem direto pra cima de mim, sedento mas sorrateiro, sem buzinar. Vai é se ferrar comigo, trem do capeta. Dito e feito: na hora agá, dou um passo para trás e, antes que ele passe de todo por mim, sento-lhe um tapa na lataria e me jogo no chão. O trânsito pára. Não por mim, mas porque o carro afro parou e dele sai uma deusa. De terninho, sobre saltos altíssimos, ela caminha com o charme e a segurança de quem se sabe linda e gostosa. Vem na minha direção, naturalmente para se certificar de que seu alvo já era. Enquanto isso, junta que junta gente. E eu aqui no chão, incólume mas imóvel, um cadáver convincente. Até que um gaiato me toca o pescoço e diz "eu acho que ele ainda não morreu". Peido, bem fedorento. Mas ninguém diz "eu acho que ele já se cagou".
Um cara se propõe a ligar pro hospital e pedir uma ambulância. Outro quer me enfiar dentro do primeiro táxi que passar. Uma velhinha, com a sensatez coroca de toda velhinha, o adverte, "não convém mexer no rapaz, pode ter afetado a espinha". Logo ouve-se a voz pastosa do especialista de plantão, “tem é que fazer
massage coronária e respiração
bocabô, se é que vocês me entendem”. Abro uma frestinha de olho e saco a figura. Um gorducho ensebado e banguela. Boca a boca? Desse aí, nem boquete de extrema-unção.
O gorducho apóia no meu peito os mãozões sobrepostos e começa a massagem cardíaca. Pele grossa e calejada de escravo diplomado, bem diferente dos dedos macios, finamente perfumados que apertam com delicadeza minhas narinas. Pela frestinha, reconheço a minha pseudo-atropeladora, que já arremete, em
zoom, sua boca carnuda, vermelha e brilhante em direção à minha. Não gosto de batom, mas um moribundo não deve exigir muito. Me contento com o toque úmido de seus lábios, e com o hálito quente de mortadela – nobre e mágica interação de carne, banha, vísceras e pelancas.
Na primeira soprada que ela dá, já fico todo arrepiado. Alguém repara e sugere, “arrumem um agasalho que o morrente tá com frio”. A mulher tira o paletó do terninho e me cobre o peito cuidadosamente. O gorducho reclama, “sua peça
vestual prejudica o meu
selvício, se é que a moça me entende”. Ela nem olha pra ele. Só pra mim. Pela frestinha, meu olhar escorrega no brilho dos olhos dela, despenca rosto lindo abaixo, rola pela ribanceira sedosa do pescoço e é tragado pelo decote generoso, onde acaricia, apalpa e beija seios firmes, de auréolas grandes e rosadas.
Mais uma soprada. Não me seguro, enfio a língua na boca da minha algoz. Pronto, passei da conta, penso. Mas, não, ela não interrompe o atendimento. Nem eu, as linguadas. Vai ficando mais lento o ritmo das sopradas, cada vez mais longas e caprichadas. Nós dois na cama, num boca a boca que vai saindo dos eixos e nos pondo a girar, lentamente, até 180 graus, noves fora, 69 – deliro. E ouço nossos gemidos, suspiros, estalos de língua, sussurros... a sirene da ambulância. Que corte! E mais outro: uma garotinha esganiça, “olha que lindo, mamãe, o presunto tá com o pinto durão”.
Tento ficar de pé e cair fora assim que a mamãe me chapa nas fuças um “seu tarado filha da puta”, mas a velhinha me acerta, de trivela, os dois testículos com um chute só. E ninguém perde a deixa. Chove palavrão, soco e pontapé. Vejo minha adorável atropeladora voltando para o carro e aciono, por ela, todo o tesão que ainda tenho pela vida. Consigo me levantar, furar o cerco de pancadas e correr, tonto e capengando, até o carro dela. Bato na escuridão do vidro da porta do carona, agarro a maçaneta, travada, e sorrio, cúmplice, mesmo sem poder ver se ela corresponde. De repente, é de novo só um carro afro com vidros afro-descendentes, sem ninguém dentro. Sim, logo a máquina arranca, me fazendo cair sentado. E avança o sinal, embora vários pedestres estejam atravessando a rua. Três com certeza teriam sidos atingidos, não fosse o alerta da sirene da ambulância – que, em alta velocidade, me acerta em cheio e vai em frente, alcançando ainda, rente à calçada, os três palermas.
“Coisa de profissional”, pensam meus bilhões de neurônios enquanto polvilham, no asfalto urbano deste entardecer cinzento, um céu estrelado que só se vê em plena noite nas áreas desertas ou pouco povoadas.
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